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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Previdenciário

O delito de apropriação indébita previdenciária como proteção jurídico-penal da Previdência Social

Thayla Soares Macedo Luna
Resumo: Este artigo tem por objetivo contextualizar o surgimento do delito de apropriação indébita previdenciária como forma de proteção jurídico-penal da previdência social. Para tanto, por meio do método de abordagem dedutivo inicialmente discorre-se sobre a tutela jurídico-penal da Previdência Social, partindo das primeiras concepções surgidas acerca da Previdência no mundo, até a análise de como foi a sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, expõe-se o tratamento dispensado à Previdência Social pelas Constituições Federais Brasileiras até a atual Constituição de 1988. Por conseguinte, adentra-se na análise do bem jurídico tutelado nos crimes contra a Previdência Social, bem como nas razões político-criminais que justificam a tutela penal da Ordem Previdenciária, ao passo que se finaliza discorrendo acerca da evolução da tutela penal da Previdência Social, sendo atribuída especial relevância ao histórico legislativo do delito de apropriação indébita previdenciária, posto ser o mesmo a primeira figura típica a tutelar especificamente a Previdência.
Palavras-chave: Previdência social. Crime contra a previdência social. Apropriação indébita.
Abstract: This article aims to contextualize the crime of misappropriation pension as a form of criminal legal protection of social security. To do this, it was used the deductive method. Initially, the article talks about the criminal legal protection of Social Security, leaving the first conceptions emerged about Security in the world until the analysis of how was its incorporation in the Brazilian legal system. Moreover, it exposes itself to the treatment by the Federal Social Security Brazilian Constitutions to the current 1988 Constitution. Therefore, it enters in the analysis of the ward in crimes against Social Security and legal as well as political-criminal reasons for the criminal protection of Social Security Order while terminates discoursing about the evolution of the penal protection of Social Security, particular importance being given to the legislative history of the tort of misappropriation pension, since even be the typical first figure specifically protect Social Security.
Keywords: Social Security. Crime against social security. Misappropriation.
Sumário: Introdução. 1 A Previdência Social no Brasil e no mundo. 2. A Previdência Social nas Constituições Federais Brasileiras. 3. O bem jurídico tutelado e as razões político-criminais que justificam a intervenção penal na Ordem Previdenciária. 4. A evolução da tutela penal da Previdência Social e histórico legislativa do delito de apropriação indébita previdenciária. Conclusão. Referências.
Introdução
O Direito Previdenciário possui a função de regulamentar e ordenar o sistema da Seguridade Social, de modo que assume vital importância perante a sociedade sobretudo no que tange a manutenção da paz e da ordem públicas. Isto porque a Seguridade Social, nos dizeres de Horvath Júnior, é um sistema em que o Estado:
“[...] fica obrigado a garantir que nenhum de seus cidadãos fique sem ter satisfeitas suas necessidades mínimas. Não se trata apenas da necessidade do Estado de fornecer prestações econômicas aos cidadãos, mas também do fornecimento de meios para que o indivíduo consiga suplantar as adversidades, quer seja prestando assistência social ou por meio da prestação de assistência sanitária.”[1]
Assim, pode-se afirmar que o desenvolvimento de um país está intimamente relacionado à eficiência de seu sistema de seguridade social. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 organizou a Seguridade Social em três bases distintas: saúde, assistência social, e previdência social, cabendo a esta última a função de arrecadar os valores para o custeio de todo o sistema.
Ocorre que, a Seguridade Social vem passando por sérios problemas financeiros que geram reflexos no campo social, e dentre tais problemas, o principal consiste na evasão de contribuições previdenciárias, ou seja, na omissão do pagamento, por parte dos beneficiários, dos encargos que deveriam destinar à Previdência Social. 
É esta necessidade de arrecadação das contribuições previdenciárias que fez com que fossem previstos em normas legais, meios e formas de se garantir o efetivo pagamento das mesmas.
Na busca de uma Seguridade eficiente e que satisfaça os anseios da sociedade, bem como na tentativa de diminuir a evasão dos valores destinados à Previdência Social, que entra em cena o Direito Penal.
Nesta senda, várias foram as leis penais que buscaram solucionar o problema da evasão das contribuições previdenciárias, ao passo que o legislador, na tentativa de punir aqueles que “deixam de contribuir” à Previdência, fez publicar em 14.7.2000, a Lei nº 9.983, que inseriu o delito de apropriação indébita previdenciária no art. 168-A do Código Penal.
Destarte, neste capítulo, inicialmente, trataremos das primeiras concepções surgidas acerca da Previdência no mundo até a análise de como foi sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro, expondo o tratamento dispensado à Previdência Social pelas Constituições Federais Brasileiras até a atual Constituição de 1988.
 Por conseguinte, será efetuada uma análise do bem jurídico tutelado nos crimes contra a Previdência Social, bem como das razões político-criminais que justificam a tutela penal da Ordem Previdenciária, discorrendo, por fim, acerca da evolução da tutela penal da Previdência Social, de modo a atribuir especial relevância ao histórico legislativo do delito de apropriação indébita previdenciária; primeira figura típica a tutelar especificamente a Previdência.
1. A Previdência Social no Brasil e no mundo
A história da Previdência Social sempre esteve atrelada à ideia de solidariedade e proteção, e embora esta última, inicialmente, possuísse apenas um caráter individual, ou seja, uma proteção do indivíduo para consigo mesmo, na defesa contra as influências do mundo exterior, esta tutela amplia-se a partir da participação familiar até estender-se a toda sociedade, impulsionada pela participação estatal. Assim, pode-se dizer que, em um primeiro momento, a visão de proteção, responsável pelo surgimento do que posteriormente se convencionou chamar de Previdência Social, estava atrelada a um traço individual da natureza humana; a proteção contra infortúnios tinha caráter meramente pessoal ou familiar, posto que, foi apenas quando as circunstâncias internas e externas passaram a não mais permitir a cumulação de recursos a serem utilizados em períodos de necessidade que as técnicas coletivas de proteção social adquiriram importância.
Sob este viés, nas lições de Lemes:
“A expressão previdência indica tudo o que se faz ou a que se procede por precaução, preventivamente, para que se acautelem interesses de qualquer ordem. A expressão tem o significado jurídico de amparo aos indivíduos, em caso de interrupção ou perda da capacidade de obter renda; de cobertura de certas despesas especiais oriundas da morte, do nascimento ou até mesmo do casamento, conforme o Estado a que se refira, através do pagamento em dinheiro que assegurem pelo menos uma parte da renda perdida por velhice, invalidez ou morte, ou ainda da proteção eventual necessária em caso de desemprego involuntário, acidente de trabalho ou doença.”[2]
As primeiras manifestações de proteção social surgiram na Antiguidade, mais especificamente na Grécia, em 228 a.C., onde membros de uma associação contribuíam para um fundo que prestava socorro aos contribuintes atingidos por adversidades.
 Em Roma, sobretudo nos séculos VI e VII, havia redes de proteção social eficientes, de modo que todos os indivíduos, não importando a qual classe pertencesse (patrícios, colonos ou escravos), tinham o trabalho como uma esfera de proteção jurídica. Assim, a partir da existência de uma rede de proteção particular ao trabalhador, apenas os absolutamente impossibilitados eram alcançados pelas necessidades sociais, dependentes, pois, da proteção do Estado, fosse através da criação de orfanatos, asilos ou manicômios. Desse modo, embora possa se falar existente o mutualismo, que é a pedra angular do contemporâneo sistema de seguridade social, os institutos nele inspirados possuíam caráter eminentemente privado, posto que a sociedade romana não concebeu estrutura securitária nos atuais moldes do Direito Previdenciário, de caráter público.
A Idade Média aproximou, sobremaneira, o público e o privado. Neste período foram aperfeiçoadas novas formas de cooperação e organização do trabalho; os senhores feudais exerciam o poder de forma descentralizada, e cada feudo constituía uma unidade de produção. No Ocidente, ressurgem as trocas comerciais, e incrementa-se uma forte concentração humana. Ademais, como forma de proteção mútua, há o surgimento das guildas e das corporações de ofício, que, entretanto, eram destituídas de abrangência, compulsoriedade e natureza pública. Os Estados através da adoção de medidas de assistência e beneficência públicas possuíam estruturas próprias de proteção aos necessitados.
Em 1789, com o advento da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, surge a concepção de Seguridade Social estatal, na qual a responsabilidade pelos riscos passa a ser rateada entre a sociedade e o Estado. Entretanto, sob o cunho do liberalismo implementado pela Revolução Francesa, estava presente o ideal individualista, que defendia o alcance da paz social independente da interferência estatal; para as teorias liberais, as relações econômicas entre indivíduos deveriam pautar-se pela autonomia da vontade, de modo que nada deveria ser feito para subsidiar-lhes ou inspirar-lhes a adoção de formas de redistribuição de renda, posto que, caso se opusessem interesses sociais e individuais, o respeito a estes levaria à realização daqueles.
Em 1810, a lei prussiana previu o seguro-doença para os assalariados, e na Áustria, em 1854, foram criados institutos de amparo à invalidez e à velhice. Entretanto, foi apenas no final do século XIX, com a edição da lei do seguro-doença, em 1883, na Alemanha, sob a chancela de Otto Von Bismarck, que a ideia de Previdência Social surge como seguro obrigatório para os trabalhadores da indústria, não enquanto benesse do Poder Público, mas sim no intuito de cobrir os riscos sociais advindos das transformações desencadeadas pela Revolução Industrial; consistindo, pois, em um sistema que visa a atender as necessidades básicas do ser humano, através de um conjunto de normas voltadas para garantir condições de subsistência às pessoas a ele filiadas, em situações nas quais não lhes seria possível perceber a renda normalmente auferida.
Na Inglaterra, a noção de proteção social (Previdência Social) não se preocupou apenas com os trabalhadores. Sob o comando de Lorde Beveridge (Primeiro-Ministro inglês de 1941 a 1946), em 1942, houve a elaboração de um plano que traçou as linhas de um programa de prosperidade política e social, garantindo ingressos suficientes para que o indivíduo ficasse acobertado por certas contingências sociais, como a indigência, ou quando, por qualquer motivo, não pudesse trabalhar[3]que, portanto, beneficiava toda a população que estivesse na condição de súdito britânico, e não somente os empregados.
Na década de trinta, até os Estados Unidos, país de tradição liberal, perceberam os prejuízos advindos do liberalismo clássico, de modo que passaram a defender a intervenção do Estado na economia nacional a fim de reduzir os problemas sociais.
No Brasil, a denominada Lei Eloy Chaves foi a primeira forma de manifestação oficial de amparo aos riscos sociais. A partir do Decreto legislativo nº 4.682, de 24/01/1923, foram criadas as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAP) junto às empresas ferroviárias, que tornavam seus empregados segurados obrigatórios, prevendo benefícios de aposentadoria por tempo de contribuição, idade, invalidez, assistência médica e pensão aos seus dependentes.
Ocorre que, poucas dessas Caixas de Aposentadoria e Pensões possuíam a quantidade mínima de segurados, fator indispensável ao funcionamento das bases securitárias; de modo que, entre 1933 e 1953, foram substituídas por seis grandes Institutos Nacionais, que embora possuíssem maior abrangência que as Caixas de Aposentadoria e Pensões, não conferiam proteção previdenciária aos trabalhadores rurais e domésticos. Através do Decreto-Lei nº 72, os institutos foram unificados pelo então Presidente Castello Branco, em 1966, dando origem ao Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), cujo papel consistia em arrecadar as contribuições devidas e pagar os benefícios em espécie, além de prestar assistência médica.
Em 1977, a Lei 6.439 deu origem ao Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), que passou a ser responsável pela política de previdência e assistência médica e social, sendo composto por três autarquias (Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (IAPAS)).
Com a Constituição Federal de 1988 foram ampliados os direitos sociais, de forma que os planos da Previdência Social adquiriram um caráter universal, a partir da contribuição, da cobertura e do atendimento. O direito de pensão foi estendido ao marido ou companheiro, surgiu o instituto da licença paternidade, alterou-se o período da licença maternidade de 84 para 120 dias, e os benefícios rurais foram elevados de meio para um salário mínimo.
Ademais, a Constituição Federal de 1988 passou a prever, já em seu artigo 1º, os fundamentos da República Federativa do Brasil, erigindo a dignidade da pessoa humana a esta categoria, além de elencar a promoção do bem de todos dentre os objetivos fundamentais constantes de seu artigo 3º.[4]
Neste contexto, Lemes ensina que:
“Essas noções de dignidade da pessoa humana e de promoção do bem social constituem fundamentos basilares do conceito de Previdência Social. Esta, enquanto conceito constitucional, está prevista no art. 201 da Magna Carta, que estabelece que ela será organizada sob a forma de regime geral, de caráter obrigatório. Preceitua ainda sua forma de custeio e os riscos sociais cobertos.”[5]
Sob esta perspectiva constitucional, em 1990, com a unificação dos Ministérios do Trabalho e Previdência Social, há a extinção do SINPAS. Surge o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autarquia federal responsável pela gestão dos recursos do Fundo de Previdência e Assistência Sociais, pela concessão de benefícios e pela arrecadação e fiscalização das contribuições sociais e demais recursos previdenciários.
Em 1991, dispondo acerca dos planos de custeio e benefícios, são editadas as Leis nº 8.212 e nº 8.213; e em 1999, é editado o Decreto nº 3.048 para regulamentar os diplomas legais mencionados.
Por fim, Martins conceitua a Previdência Social como:
“A técnica de proteção que visa propiciar os meios indispensáveis à subsistência da pessoa humana – quando esta não pode obtê-los ou não é socialmente desejável que os aufira pessoalmente através  do trabalho, por motivo de maternidade, nascimento, incapacidade, invalidez, desemprego, prisão, idade avançada, tempo de serviço ou morte – mediante contribuição compulsória distinta, proveniente da sociedade e de cada um dos participantes.”[6]
2. A Previdência Social nas Constituições Federais Brasileiras
Enquanto ramo autônomo do direito público, voltado para garantia dos direitos fundamentais e da Ordem Social, o Direito Previdenciário e a própria noção de Seguridade Social, destinada a assegurar a proteção social aos necessitados, são recentes na história jurídica. Foi apenas a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do cidadão, que, em 1948, a solidariedade passou a ser reconhecida como um valor juridicamente positivado, fundamental para a concretização dos direitos sociais.
A primeira preocupação com a Seguridade Social acontece ainda no século XVI, com o surgimento das Santas Casas de Misericórdia, cujos objetivos estavam voltados para a proteção social dos necessitados.
Em 1824, a primeira constituição federal germinou embebida na ideologia liberal do século XVIII[7]o papel minimalista atribuído ao Estado fez com que o mesmo voltasse suas preocupações para a prestação dos serviços públicos básicos, o que culminou na expressa previsão constitucional dos “socorros públicos” de natureza assistencial, dando início a constitucionalização da Seguridade Social sem que ainda se pudesse falar em Direito Previdenciário propriamente dito.
Na República, a Constituição Federal de 1891 dispôs pela primeira vez acerca do direito à aposentadoria como Direito Previdenciário, que, no entanto, era destinado apenas aos servidores públicos, fugindo à noção de universalização dos direitos sociais. É nesta ordem constitucional, com a edição da Lei Eloy Chaves, (Decreto nº 4.682/1923) que criou em cada uma das empresas de estradas de ferro existentes no país uma caixa de aposentadoria e pensões para os respectivos empregados, que surge o Direito Previdenciário, embora ainda sem expressa previsão constitucional. Anos depois, os benefícios desta lei foram estendidos aos trabalhadores portuários e marítimos (1926), assim como ao pessoal das empresas de serviços telegráficos e rádio-telegráficos (1928).
A Constituição Federal de 1934 trouxe pela primeira vez ao texto constitucional a expressão previdência,embora ainda não adjetivada de social. Ademais, houve uma significativa inserção de direitos sociais no ordenamento pátrio[8], além de ter sido garantido o direito à aposentadoria integral para os funcionários públicos[9]. Ainda, sob a égide desta constituição foi prevista a tríplice forma de custeio, devendo colaborar a União, os empregados e empregadores.
 Com a Constituição Federal de 1937, o ordenamento jurídico pátrio utilizou, pela primeira vez, o termo “Seguro Social”. Ocorre que, não obstante os benefícios já possuírem feição previdenciária, este ramo do direito ainda não era concebido de forma autônoma, constituindo apenas parte do Direito do Trabalho.
Foi somente a partir da Constituição Federal de 1946 que a expressão “Previdência Social” foi utilizada de maneira própria, tendo por conteúdo a proteção dos riscos sociais, tais como as doenças, a invalidez, a velhice e a morte. Sob o crivo desta constituição foi promulgada a Lei Orgânica da Previdência Social (Lei nº 3.807/1960) que passou a unificar os critérios para a concessão de benefícios.
Em 1967, a Constituição Federal em nada inovou, posto que foi somente em 1988, sob a égide da atual constituição, que passou a ser dado um tratamento diferenciado à matéria, reunindo sob o conceito de Seguridade Social: saúde, assistência e previdência sociais. Ademais, o constituinte criou uma espécie tributária voltada, especificamente, para o custeio da Seguridade Social: as contribuições sociais. Ainda, dentre tais contribuições sociais (gênero), destinou algumas, de forma geral, ao financiamento de toda a Seguridade Social, enquanto outras passaram a destinar-se, especificamente, ao financiamento da Previdência Social, as contribuições previdenciárias (espécie).
Ademais, em relação à previdência social, a Constituição de 1988 organiza a mesma sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial (art. 201).[10] É aqui, quando o texto constitucional se refere ao equilíbrio financeiro e atuarial, que se abrem as portas para a criminalização, de modo que só é possível atingir o referido equilíbrio garantindo o aporte de recursos ao sistema, o que reforça a criminalização de condutas que esvaziam a arrecadação.
Por derradeiro, importa salientar que o tratamento jurídico-constitucional dispensado à Previdência Social pela Constituição Federal de 1988, mostrou-se muito mais abrangente que nos demais textos constitucionais; além da preocupação em tutelar os riscos suportados pela sociedade, a Constituição disciplinou também os princípios norteadores do sistema, bem como regras fundamentais ao seu funcionamento.
3. O bem jurídico tutelado e as razões político-criminais que justificam a intervenção penal na Ordem Previdenciária
A partir da Constituição Federal de 1988, que buscou materializar os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, constitucionalizou-se a chamada Seguridade Social, que passou a contemplar saúde, assistência e previdência social.
Desde então, estruturou-se um sistema social de custeio e proteção aos menos favorecidos que passa a demandar financiamento público, carecendo o Estado da contribuição dos indivíduos, que passa a ser obtida por meio do pagamento de tributos.
Nessa seara, Veloso ensina que:
“O Estado institui tributos sob o fundamento da necessidade de captar recursos para manter a própria estrutura e disponibilizar ao conjunto da sociedade os serviços considerados essenciais, entre eles a saúde, a educação e a segurança. Essa demanda cresceu, pois desde o surgimento do chamado Estado Social, a assistência social entrou na ordem do dia dos governos, aumentando descontroladamente os gastos públicos, e levando a sucessivos déficits orçamentários, que desencadearam a procura por novas fontes de receitas e otimização das existentes”.[11]
 Disciplinando a forma de custeio da Seguridade Social, o art. 195 da Constituição Federal preconiza que a sociedade civil deverá financiá-la por meio das seguintes contribuições:
“Art. 195 omissis [...]:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;
III - sobre a receita de concursos de prognósticos.
IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar”.[12]
Sob tal perspectiva, é este o artigo que enseja a criminalização de condutas lesivas à arrecadação para a seguridade social, na medida em que cria, constitucionalmente, a obrigação tributária, delimitando, ademais, quem são seus sujeitos passivos.
A importância conferida à arrecadação de tributos na sociedade moderna, fez com que se estabelecesse uma necessária relação entre o direito penal e o direito previdenciário, ao passo que o legislador achou por bem criminalizar condutas decorrentes do não recolhimento dos mesmos. Nesse contexto, Castro e Lazzari:
“Na ocorrência de prática de infração à legislação previdenciária, há que se observar se a conduta do agente caracteriza delito ou contravenção penal. Daí a importância da relação com o Direito Penal. Desse ramo obter-se-á tipificação de condutas reprováveis sob o ponto de vista criminal, sujeitas à sanção penal, cabendo ao estudioso do Direito Previdenciário ter delas noção”.[13]
Comentando a função hodiernamente atribuída ao direito penal concernente à criminalização de condutas, Veloso conclui:
“[...] Assim, o Direito Penal, que deveria ser o último recurso para o recolhimento dos tributos, passa a ser o primeiro, com a ameaça de prisão se destinando a obrigar o contribuinte ao pagamento, mesmo que para isso se quebre toda a estrutura da reparação posterior do dano como causa de diminuição da pena para transformar a saldação da dívida até sentença final numa causa de extinção da punibilidade”.[14]
Ademais, enfatiza que:
“A sociedade de risco produz um novo Direito Penal, que se caracteriza principalmente por uma política não de descriminalização, mas de criminalização. O legislador se preocupa muito mais com a parte especial do Código Penal e com a legislação extravagante que com a parte geral e o sistema de penas e medidas de segurança, o que implica o surgimento de novos tipos penais em áreas como meio ambiente, tributação, economia, processamento de dados e criminalidade organizada.”[15]
A evolução da sociedade tornou necessária a tutela de bens jurídicos supraindividuais, distintos dos até então tutelados pelo Direito Penal (vida, liberdade, patrimônio), posto que este ramo do direito passou a tipificar condutas que afetam um número maior de pessoas, violando interesses que suplantam os meramente individuais. O Direito Penal passa, pois, a criminalizar condutas que lesionem ou coloquem em risco bens jurídicos de interesse coletivo ou difuso, de modo a ampliar a área de bens objeto de sua proteção.
Destarte, passam a coexistir os princípios liberais, voltados para a garantia da liberdade individual e da igualdade entre os cidadãos, limitadores do poder estatal, e tendentes a descriminalização de condutas; com os princípios sociais, tendentes à proteção de bens coletivos, e com viés de maior criminalização.
Ao comentar acerca da importância conferida aos bens jurídicos de natureza transindividual pela sociedade de risco, Prado ensina que se trata de uma
“[...] sociedade de alta tecnologia, complexa e volátil – e a indiscutível relevância desses bens jurídicos de natureza transindividual – indispensáveis para a existência e o desenvolvimento do homem e da sociedade – justificam plenamente a necessidade de interferência do Direito Penal – de forma seletiva, tecnicamente correta e limitada.”[16]
Neste contexto, desde o século XX, o legislador tem tratado como crime a conduta de não repassar aos cofres públicos a contribuição social recolhida dos empregados, tipificada, até então, como apropriação indébita; se encarregando de acrescentar o delito de apropriação indébita previdenciária ao artigo 168-A do Código Penal com a promulgação da Lei nº 9.983 de 14 de julho de 2000.
Assim, pode-se afirmar que atualmente a tutela penal da Ordem Previdenciária ocorre através de tipos penais específicos, dentre os quais, o delito de apropriação indébita previdenciária, objeto do presente estudo; entretanto, importa efetuar a análise do bem jurídico antes da decomposição da estrutura típica, posto que para a identificação da “Previdência Social” enquanto bem jurídico tutelado torna-se imprescindível compreender os limites de seu conteúdo.
A delimitação do conceito de bens jurídicos supraindividuais não é das tarefas mais fáceis, de modo que a definição de tais valores macrossociais acaba por dificultar o estudo da justificação das medidas penais voltadas para a tutela dos mesmos.
Nesta seara, mesmo concordando com as dificuldades que permeiam essa peculiar tutela penal, o professor Rodrigo Sánchez Rios[17] afirma que nos âmbitos penal tributário e penal previdenciário, existe um “objeto de tutela plenamente justificável”.
Entretanto, antes de adentrar no estudo específico acerca do bem jurídico tutelado pelos crimes contra a arrecadação previdenciária, imperioso estabelecer a importância que os estudiosos conferem ao tema, posto que não se pode pretender estudar qualquer tipo penal antes de averiguar a essência de proteção da norma, estabelecendo com o maior grau de acuidade possível, o bem jurídico tutelado.
Neste contexto, nas palavras de Baretta:
“A noção de bem jurídico desempenha relevante papel em um estado de direito democrático e social, pois define a função do Direito Penal e estabelece os limites do jus puniendi [...]. Sendo assim, os bens jurídicos estão na base da criação dos tipos penais que resultam da necessidade de proteção daqueles bens indispensáveis ao convívio ordenado dos homens. O legislador, ao configurar os tipos, descreve condutas que, em tese, são ilícitos porque atentam contra bens e interesses considerados indispensáveis à sociedade.”[18]
Ademais, acerca da importância do tema ora em estudo, Coelho enfatiza que “o Direito Penal hodierno não pode prescindir de instrumentos garantidores da liberdade, que limitem o poder criminalizador do Estado [...]”.[19] Outrossim, Zaffaroni e Pierangeli ensinam que “não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, posto que os tipos não passam de particulares manifestações de tutela jurídica desses bens”.[20]
Nessa ordem de ideias, deve-se ter em mente que é o estudo do bem jurídico, e sua correta delimitação que possibilitam a fixação do adequado âmbito de proteção da norma, na medida em que preenchem o tipo penal de conteúdo.
Ainda, nos dizeres de Casagrande:
“É a exata determinação do objeto a ser tutelado que serve de limitador à atividade punitiva estatal, garantindo que o Direito Penal consista em via de ultima ratio do ordenamento jurídico, pois se com relação ao controle social informal o Direito exerce papel subsidiário diante das organizações comunitárias, no âmbito do subsistema de controle social formal que se denomina Direito o Direito Penal é subsidiário em relação aos demais ramos (Civil, Administrativo, Trabalhista).”[21]
Ocorre que, são inúmeros e, por vezes, contraditórios os entendimentos doutrinários acerca do bem jurídico tutelado pelos crimes previdenciários, o que se deve não apenas ao pouco tempo decorrido desde a criação dos tipos penais, mas também a multidisciplinariedade que envolve a questão, já que as normas instituidoras dos tipos penais de apropriação indébita previdenciária (Código Penal, art. 168-A) e sonegação de contribuição previdenciária (Código Penal, art. 337-A) possuem natureza de normais penais em branco.
Nesta seara Lemes afirma que:
“É lugar comum apontar-se a “Previdência Social” como o o bem jurídico tutelado pelas normas penais previdenciárias. Há quem vislumbre, ainda, como bem jurídico protegido a Seguridade Social, a Ordem Tributária, uma vez que as contribuições previdenciárias são espécies de tributos; ou ainda a arrecadação tributária. E há quem entenda, ainda, que o bem jurídico restringe-se ao patrimônio da Previdência.”[22]
Entretanto, em que pesem as divergências doutrinárias, pode-se concluir que o bem jurídico tutelado nos crimes contra a previdência social, diferentemente dos delitos propriamente administrativos (meras faltas de recolhimento), ou contra a Ordem Tributária, não é apenas o patrimônio estatal (crédito público ou tributário), mas também a relevância do sistema previdenciário no que tange à tutela dos mais básicos interesses humanos: saúde, subsistência, e vida digna.
Nas palavras de Lemes:
“[...] faz-se necessário que a proteção da Seguridade Social, enquanto meio de proteger o ser humano dos riscos sociais, de forma imediata e direta, seja mais enfática que a Ordem Tributária. É o que justifica, por exemplo, a tipificação de condutas omissivas dos recolhimentos previdenciários descontados dos segurados e não repassados à Previdência Social.”[23]
Ademais, conforme as lições de Prado:
“Na matéria em estudo, não há como negar que a sonegação e a fraude fiscal apresentam inegáveis efeitos deletérios no cumprimento das prestações públicas por parte do Estado, como nos programas sociais inseridos no âmbito da Seguridade social, visando à sedimentação da justiça social”.[24]
Nesta esteira, importa destacar as lições de Casagrande [25], para quem o bem jurídico tutelado pelo art. 168-A do Código Penal é a arrecadação para a seguridade social, ou seja, os interesses estatais ligados à arrecadação das contribuições previdenciárias e seus acessórios, devidos à Previdência Social (INSS).
Ainda, referindo-se respectivamente ao crime de apropriação indébita previdenciária, Bitencourt afirma que:
“Bem jurídico protegido são as fontes de custeio da seguridade social, particularmente os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (art. 194 da Constituição Federal (CF)). São protegidas especialmente contra a apropriação indébita que pode ser praticada por quem tem o dever de recolher os tributos e as taxas. É, em outros termos, a tutela da subsistência financeira da previdência social.”[26]
Com efeito, deve-se ter em mente que, se de um lado, o sistema securitário precisa atuar para manter programas de saúde e assistência a quem precisa, também está encarregado de arrecadar recursos que confiram sustentação econômica para tanto. Assim, o sistema previdenciário tutela não apenas o patrimônio, mas, sobretudo, o direito constitucionalmente assegurado a todo cidadão de ser protegido por este sistema.
Ainda, em que pese efetuada a análise do bem jurídico tutelado pelos crimes contra a Previdência Social, importa delimitar no presente estudo a sua própria nomenclatura. Isto porque, na vigência do art. 95, alínea “d” da Lei 8.212/91, a figura delitiva se referia à Seguridade, ao passo que o então vigente art. 168-A do Código Penal passou a utilizar a expressão Previdência, o que acabou por ocasionar dúvidas quanto ao real âmbito de tutela penal. A proteção penal seria destinada a toda a Seguridade Social, ou, especificamente, à Previdência?
Comentando a alteração legislativa advinda com a Lei nº 9.983/00, Prado aduz que:
“Observe-se que, ao mencionar a Previdência Social, não mais a Seguridade Social, como constava do art. 95, d, da Lei 8.212/91, o novo tipo penal acabou por modificar o âmbito de atuação do ius puniendi, que agora tem outro escopo, ou seja, preservar o repasse das contribuições ou outras importâncias destinadas à Previdência Social e não mais à saúde ou à assistência social, integrantes da Seguridade Social.”[27]
Neste condão, a própria Constituição Federal de 1988 tratou de diferenciar os institutos, disciplinando em seu art. 194 a Seguridade Social enquanto “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”; portanto gênero do qual a noção de Previdência Social, tratada no art. 201 como “regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”, constitui uma espécie, de modo que, inobstante o conceito de Seguridade Social abranger toda a noção de Previdência Social, com ela não se confunde.[28]
Ocorre que, em verdade, a dificuldade que permeia a questão advém do fato de que a autarquia responsável pela concessão e administração dos benefícios previdenciários e pelo produto da arrecadação das contribuições que a Constituição Federal destina ao financiamento da Seguridade Social é responsável também pelo pagamento dos benefícios assistenciais, nos quais não há a pessoa do segurado nem contraprestações tributárias específicas. Ou seja, não obstante o caráter previdenciário do INSS, suas funções também abrangem um dos ramos da Assistência Social.
Deste modo, pode-se afirmar que, embora as contribuições sociais previstas na Constituição Federal sejam destinadas a financiar, de modo amplo, toda a Seguridade Social, algumas delas são exclusivamente previdenciárias. E, mesmo assim, o INSS, autarquia previdenciária, é responsável não só pela administração do produto da arrecadação das contribuições previdenciárias específicas, mas também pelo gerenciamento de algumas contribuições sociais destinadas à Seguridade Social como um todo.
Sob este viés, Lemes conclui dizendo que:
“Então, na verdade, as contribuições que ensejam a prática dos crimes previstos nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, não têm natureza apenas previdenciária, mas de contribuições sociais para o financiamento daSeguridade Social (art. 195, caput, da Constituição Federal). Não obstante, nem toda a Seguridade é alcançada pela tutela penal dessas contribuições: apenas a Previdência Social e parcela da Assistência Social. Neste último caso, apenas o financiamento dos benefícios assistenciais pagos em pecúnia pelo INSS. Por isso o legislador menciona contribuições sociais, e não, previdenciárias, apesar de esta ser espécie daquela, que é gênero.”[29]
Outrossim, o INSS é responsável por administrar o Fundo de Previdência e Assistência Sociais, destinatário do produto da arrecadação das contribuições sociais, e voltado tanto para os benefícios previdenciários quanto para os assistenciais, de modo que embora possa-se afirmar que o bem jurídico tutelado seja a Previdência Social, as contribuições tuteladas são destinadas, genericamente, à Seguridade Social como um todo.
Nesta seara, ainda Lemes:
“Em decorrência da natureza da natureza representativa do INSS em relação à Previdência Social, e de sua atribuição para arrecadação de determinadas contribuições sociais, é possível falar em tutela penal da Previdência Social, apesar de uma parcela de algumas contribuições dirigir-se ao pagamento de benefícios assistenciais e não, previdenciários.”[30]
É esta a perspectiva que torna possível se falar em crimes previdenciários, ou em crimes contra a previdência social, posto que as contribuições são administradas pelo INSS, autarquia responsável pelo gerenciamento do Regime Geral de Previdência Social.
Feitas estas considerações acerca do bem jurídico tutelado pela norma penal, passa-se a analisar as razões político-criminais que justificam esta atuação, ou seja, a legitimidade do Direito Penal para protegê-lo, ao passo que o status constitucional do valor tutelado é necessário, mas não é suficiente para que se considere a tutela penal.
Neste contexto, não obstante o status constitucional do bem jurídico tutelado, o que legitima a intervenção penal nesse ramo do direito, deve-se verificar também a real necessidade de que este valor seja merecedor de proteção penal, e para tanto é imprescindível que os demais ramos do direito (administrativo, financeiro e tributário), voltados para a tutela desses bens jurídicos supraindividuais, sejam destituídos da sanção necessária a tutelar tal valor.
De início, conforme já exposto, deve-se ter em mente que a Previdência Social é um valor previsto constitucionalmente dentre as noções de Seguridade Social e Ordem Social, e que, segundo o disposto no art. 193 da Constituição Federal de 1988 possui por objetivos o bem-estar e a justiça sociais (proteção social e distribuição de riquezas). Ademais, estabelece para a consecução de tais finalidades, a obrigatoriedade de filiação e a contribuição, desde que observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial.
Ainda, tamanha a importância conferida à Previdência Social, que a Constituição de 1988 se preocupou em estabelecer uma espécie tributária voltada diretamente para o seu custeio, qual seja, as contribuições sociais, além de prever, dentre estas contribuições, uma de natureza especificamente previdenciária (art. 195, inciso I, ‘a’, e inciso II, combinado com o art. 167, inciso XI, da Constituição Federal).[31]
Entretanto, ainda que este tratamento constitucional confira legitimidade à tutela penal previdenciária, é necessário verificar também a necessidade da proteção penal que é atribuída a este valor, o que apenas se justifica tendo em vista o princípio da intervenção mínima do Direito Penal. Deste modo, a intervenção do Direito Penal na Ordem Previdenciária apenas se legitima em face da carência de sanção dos demais ramos do direito, ou ainda, quando esta sanção se mostre insuficiente ou inadequada. Isto porque, a criminalização de condutas pressupõe o respeito ao caráter de ultima ratio do Direito Penal.
Nesta seara, o Direito Administrativo possui um papel fundamental na tutela jurídica da Previdência Social, seja através da imposição de multas, ou da não emissão de Certidões Negativas de Débito, o que ocasiona sérios prejuízos ao seu titular; não obstante, estas sanções administrativas mostram-se suficientes apenas quando se está diante de um delito tipicamente administrativo, posto que não se prestam a prevenir condutas lesivas à arrecadação tributária; não bastando em si mesmas quando se está diante de delitos fiscais propriamente ditos, nos quais há uma conduta prévia e mais grave, destinada a supressão ou redução do tributo. Portanto, perquirir a necessidade de intervenção do Direito Penal no âmbito previdenciário pressupõe a análise da conduta a ser incriminada.
Nas lições de Lemes:
“O Direito Administrativo-Previdenciário prevê a imposição de penalidades administrativas para o descumprimento de normas de interesse do fisco previdenciário. No entanto, considerando que as condutas mais graves contra a Previdência Social não se esgotam em ilícitos administrativos, as sanções administrativas não são suficientes a tutelar esse bem jurídico. Ou seja, a depender da conduta ilegal contra a Previdência, a sanção administrativa pode, ou não, ser suficiente. Não o sendo, será legítima a intervenção penal.”[32]
Ademais, pode-se afirmar que é a função instrumental do sistema tributário, voltado não apenas para a arrecadação de receita e consequente manutenção da máquina estatal, mas, sobretudo, para a destinação das mesmas para a realização dos direitos constitucionais fundamentais, em prol da dignidade da pessoa humana, que justificam e legitimam a intervenção penal.
Assim, segundo Salomão:
“Podemos notar, agora especificamente em nossa Constituição Federal, que o valor central, o núcleo axiológico, o eixo central de todo o ordenamento jurídico nacional é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF). A descoberta dos bens jurídicos dignos de tutela penal deve, portanto, nortear-se por este valor. Sabe-se que o Direito Penal pode estender sua tutela a bens jurídicos individuais e superindividuais (coletivos ou difusos). Mas mesmo estes últimos, para poderem receber a qualificada tutela penal, terão de guardar uma relação, ao menos instrumental, com a consecução da dignidade humana; a ausência desta relação retira-lhes a dignidade penal.”[33]
Entretanto, a intervenção penal na Ordem Previdenciária deve voltar-se apenas para as condutas mais graves, que lesionam, pois, os bens jurídicos mais relevantes.
Ainda, pode-se afirmar que a intervenção penal na Ordem Previdenciária justifica-se pela própria noção de bem jurídico. Isto porque, quando se estabelece uma relação entre o direito penal e o bem jurídico por ele tutelado, o injusto material decorre da proeminência que a Constituição Federal confere a determinados bens, dentre os quais, a liberdade individual e a dignidade da pessoa humana.
Nestes termos, Sanchéz afirma que para um valor jurídico ser potencialmente protegido pela norma penal três requisitos deveriam estar presentes: “uma referência individual, uma danosidade social das agressões ao mesmo, uma roupagem constitucional”.[34]
4. A evolução da tutela penal da Previdência Social e histórico legislativa do delito de apropriação indébita previdenciária
Ao tutelar os chamados “Crimes contra a Previdência Social”, o Direito Penal busca coibir condutas que lesionam o sistema de benefícios e de contribuições.
No que tange aos crimes contra a área beneficiária da Previdência Social, tutela-se a obtenção indevida de benefícios, posto que adquiridos mediante fraude que ocasiona prejuízos ao INSS – autarquia federal vinculada ao Ministério da Previdência Social, responsável pela administração do Regime Geral de Previdência Social, com funções voltadas para a arrecadação das contribuições e concessão de benefícios previdenciários e assistenciais – conduta esta tipificada no art. 171, § 3º do Código Penal, que não merece maiores considerações no presente estudo.
Quanto aos crimes contra as contribuições para o Regime Geral de Previdência Social, entendidos como típicos delitos fiscais (criminalidade econômica), a conduta típica mais específica de tutela penal da Previdência Social consiste na omissão de recolhimento para os cofres públicos das contribuições previdenciárias descontados dos contribuintes, estando prevista no art. 168-A do Código Penal, sob a rubrica de “apropriação indébita previdenciária”.[35] Foi este tipo penal que deu origem a proteção jurídico penal específica da Previdência Social, posto que merece análise a evolução histórico legislativa desta figura típica.
O primeiro diploma legal que trouxe a previsão criminal da conduta do empregador que deixasse de pagar à Previdência as parcelas retidas de seus empregados foi o Decreto-lei nº 65 de 1937, que assim dispunha:
“Art. 5º. O empregador que retiver as contribuições recolhidas se seus empregados e não as recolher na época própria incorrerá nas sanções do art. 331, nº. 2, da Consolidação das Leis Penais, sem prejuízo das demais sanções estabelecidas neste Decreto-Lei.”[36]
Note-se que tal decreto equiparava a falta de recolhimento, no prazo devido, das contribuições previdenciárias ao crime de apropriação indébita.Tal equiparação sempre foi uma constante em nosso Direito, embora duramente criticada pela doutrina.
Em 1960, com a edição da Lei Orgânica da Previdência Social (Lei nº 3.807), houve a primeira alteração legislativa do crime, que ocasionou uma mudança no tipo objetivo, posto que o núcleo do tipo não previa mais a conduta de “reter” as contribuições recolhidas, mas sim,  a “falta de recolhimento” das mesmas. É o que dispunha o art. 86 da Lei nº 3.807, in verbis:
“Art. 86. Será punida com as penas do crime de apropriação indébita a falta de recolhimento, na época própria, das contribuições e de outras importâncias devidas às instituições de previdência e arrecadadas dos segurados ou do público.
Parágrafo Único. Para os fins deste artigo, consideram-se pessoalmente responsáveis o titular da firma individual. Os sócios solidários, gerentes, diretores ou administradores das empresas incluídas no regimes desta lei.”[37]
Entretanto, a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) reiterava o erro anterior, na medida em que também promovia uma equiparação entre os crimes de “não recolhimento, na época própria, da contribuição social” e o delito de apropriação indébita.
Em 1967, a Lei nº 3.807/60 foi alterada pelo Decreto nº 60.501, que em seu art. 347, inciso II, alínea “a”, passou a definir a conduta típica da seguinte forma:
“Constitui crime: de apropriação indébita, definido no art. 168 do [Código Penal] (CP): deixar de recolher na época própria as contribuições e outras quaisquer importâncias arrecadadas dos segurados ou do público e devidas à Previdência Social.”[38]
Em 1976, houve a Consolidação das Leis da Previdência Social, através da edição do Decreto nº 77.077, que repetiu o dispositivo legal anterior em seu art. 224.
Em 1990, foi editada a Lei nº 8.137, que previu em seu art. 2º, inciso II, o tipo penal com a seguinte redação: “Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.”[39]
Em 1991, com a edição da Lei nº 8.212, que passou a regular de maneira superposta a legislação anterior, dando, inclusive, tratamento diferenciado as condutas lesivas às contribuições sociais, houve uma tentativa falha de sistematizar os crimes contra a Previdência Social, posto que, em seu art. 95, foram elencados, em 10 (dez) alíneas, diversos crimes, dentre os quais o de apropriação indébita previdenciária, previsto nos incisos “d”, “e” e “f”[40], punidos com a sanção prevista no art. 5º da Lei nº 7.492/86[41]. Nas demais alíneas foram previstos outros crimes, que, entretanto, eram desprovidos de sanção, motivo pelo qual continuou a ser aplicada a estes as disposições do art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90.[42]
Neste contexto, em 1999, surge um novo movimento legislativo voltado para a sistematização da matéria que deu origem a vigente Lei nº 9.983/00. Durante a tramitação do projeto de lei, várias foram as emendas que se preocuparam com o tratamento que deveria ser dado à conduta do agente antes da fiscalização, de modo que a maioria delas previa a possibilidade de extinção da punibilidade com a mera declaração e confissão espontânea do débito, antes que se iniciasse a ação fiscal, tanto para o delito de apropriação indébita previdenciária, que pressupunha também o pagamento concomitante, quanto para o crime de sonegação.
A Lei nº 9.983/00 foi publicada em 14 de julho, com claro propósito de recrudescer o tratamento penal dado aos crimes previdenciários, e torná-los efetivamente aplicáveis, tendo iniciado sua vigência 90 dias após, revogando expressamente o art. 95 da Lei nº 8.212/91, e fazendo inserir no Código Penal os arts. 168-A e 337-A, que atualmente reúnem a criminalidade econômica contra a Previdência Social.
Nestes termos, na lição de Teixeira, o legislador ao fazer inserir os crimes previdenciários no Código Penal pretendeu
“[...] dar maior visibilidade aos crimes praticados contra a Previdência Social e, por outro lado, colocar essas figuras penais a salvo da instabilidade a que estavam sujeitos na lei previdenciária. Também, sob o aspecto simbólico, parece que sua inserção no Código Penal confere um ‘status’ mais elevado na escala de reprovabilidade da conduta.”[43]
Conclusão
A Seguridade Social compreende um complexo sistema de arrecadação, administração e distribuição de riqueza, de modo que o Estado fica obrigado a garantir aos seus cidadãos a satisfação de suas necessidades básicas. Não se trata apenas de fornecer prestações econômicas aos cidadãos, mas também de fornecer meios para que os mesmos consigam superar as adversidades. As primeiras manifestações de proteção surgiram na Antiguidade, mais especificamente na Grécia; e embora estivessem atreladas à ideia de solidariedade, possuíam um caráter meramente individual. É a instituição do Estado enquanto ente provedor que tem o condão de estatizar a solidariedade; os cidadãos passam a abandonar as ações individuais e a solidariedade torna-se responsabilidade estatal.
No Brasil, a denominada Lei Eloy Chaves foi a primeira forma de manifestação oficial de amparo aos riscos sociais. Em 1824, o papel minimalista atribuído ao Estado fez com que o mesmo voltasse suas preocupações para a prestação dos serviços públicos básicos, o que culminou na expressa previsão constitucional dos socorros públicos de natureza assistencial, dando início a constitucionalização da Seguridade Social, sem que ainda se pudesse falar em Direito Previdenciário propriamente dito. Durante a República, a Constituição Federal de 1891 dispôs pela primeira vez acerca do direito à aposentadoria como Direito Previdenciário, que, no entanto, era destinado apenas aos servidores públicos, fugindo à noção de universalização dos direitos sociais. Em 1934, foi prevista pela primeira vez no texto constitucional a expressão previdência, embora ainda não adjetivada desocial, havendo uma significativa inserção de direitos sociais no ordenamento pátrio. Com a Constituição Federal de 1937, utilizou-se pela primeira vez o termo Seguro Social. A partir da Constituição Federal de 1946 que a expressão Previdência Social foi utilizada de maneira própria, tendo por conteúdo a proteção dos riscos sociais. Entretanto, foi somente em 1988, sob a égide da atual Constituição, que passou a ser dado um tratamento diferenciado à matéria, reunindo sob o conceito de Seguridade Social: saúde, assistência e previdência sociais, de modo que o constituinte criou uma espécie tributária voltada, especificamente, para o custeio da Seguridade Social: as contribuições sociais, destinando as contribuições previdenciárias, especificamente, ao financiamento da Previdência Social.
Assim, enquanto ramo autônomo do direito público, voltado para garantia dos direitos fundamentais e da Ordem Social, o Direito Previdenciário e a própria noção de Seguridade Social, destinada a assegurar a proteção social aos necessitados, são recentes na história jurídica. Foi apenas a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do cidadão, que, em 1948, a solidariedade passou a ser reconhecida como um valor juridicamente positivado, fundamental para a concretização dos direitos sociais.
Com a Constituição Federal de 1988 foram ampliados os direitos sociais, passando-se a organizar a previdência social sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, abrindo as portas para a criminalização de condutas que afetam o referido equilíbrio, ou seja, o aporte de recursos ao sistema. O tratamento jurídico-constitucional dispensado à Previdência Social mostrou-se muito mais abrangente que nos demais textos constitucionais; além da preocupação em tutelar os riscos suportados pela sociedade, a Constituição disciplinou também os princípios norteadores do sistema, bem como regras fundamentais ao seu funcionamento.
Neste contexto, o Direito Previdenciário assume vital importância perante a sociedade, na medida em que possui a função de regulamentar e ordenar o sistema da Seguridade Social, na busca pela manutenção da paz e da ordem públicas, sendo possível afirmar que o desenvolvimento de um país está intimamente relacionado à eficiência de seu sistema de seguridade social.
Ocorre que, em todo o mundo, a Seguridade Social vem passando por sérios problemas financeiros que acabam por gerar reflexos no campo social, e dentre tais problemas, o principal consiste na evasão de contribuições previdenciárias, ou seja, na omissão do pagamento, por parte dos beneficiários, dos encargos que deveriam destinar à Previdência Social. 
É esta necessidade de arrecadação das contribuições previdenciárias que fez com que fossem previstos em normas legais, meios e formas de se garantir o efetivo pagamento das mesmas. Assim, na tentativa de diminuir a evasão dos valores destinados à Previdência Social, entra em cena o Direito Penal, que passa a tutelar bens jurídicos supraindividuais, distintos dos até então tutelados (vida, liberdade, patrimônio), posto que este ramo do direito passou a tipificar condutas que afetam um número maior de pessoas, violando interesses que suplantam os meramente individuais, aquelas que lesionam ou colocam em risco bens jurídicos de interesse coletivo ou difuso, de modo a ampliar a área de bens objeto de sua proteção.
Neste contexto, várias foram as leis penais que buscaram solucionar o problema da evasão das contribuições previdenciárias, ao passo que o legislador, na tentativa de punir aqueles que “deixam de contribuir” à Previdência, fez publicar em 14.7.2000, a Lei nº 9.983, que inseriu o delito de apropriação indébita previdenciária no art. 168-A do Código Penal.


Assim, pode-se afirmar que atualmente a tutela penal da Ordem Previdenciária ocorre através de tipos penais específicos, dentre os quais, o delito de apropriação indébita previdenciária.

Previdenciário

Perda e manutenção da qualidade de segurado do regime geral de previdência social

Gilvan Nogueira Carvalho

Sumário: 1. Introdução 2. Os tipos de segurados do Regime Geral de Previdência Social 2.1. O segurado empregado 2.2. O segurado empregado doméstico 2.3. O segurado contribuinte individual 2.4. O segurado trabalhador avulso 2.5. O segurado especial 2.6. O segurado facultativo 3. Regras para a manutenção e perda da qualidade de segurado do Regime Geral de Previdência Social 4. Questões específicas de alguns benefícios
1. Introdução
Para fazer jus aos benefícios e serviços do Regime Geral de Previdência Social é necessário que a pessoa seja qualificada como beneficiária do sistema. Os beneficiários, segundo a lei nº 8.213/91, que dispõe sobre o plano de benefícios da Previdência Social, são os segurados e os dependentes. Os segurados, por sua vez, estão divididos entre segurados obrigatórios e segurados facultativos. Os segurados obrigatórios, em regra, são todos aqueles que possuem uma fonte de rendimentos formal ou informal e não estão vinculados e nenhum regime próprio de previdência. Segundo a lei, esses segurados obrigatórios estão classificados em cinco categorias: os segurados empregados, os segurados empregados domésticos, os segurados trabalhadores avulsos, os segurados contribuintes individuais e os segurados especiais.
O segurado facultativo é aquele  maior de dezesseis anos de idade que se filiar ao Regime Geral de Previdência Social, mediante contribuição, desde que não esteja exercendo atividade remunerada que o enquadre como segurado obrigatório da previdência social.
Tendo em vista que o Regime Geral de Previdência social é de caráter contributivo, a regra geral é que para fazer jus aos benefícios e serviços é preciso estar contribuindo com o sistema. No entanto, em alguns casos, quando o segurado pára de contribuir, a lei garante a ele, por determinado tempo, todos os direitos perante a previdência como se contribuindo estivesse; é o período de graça[1].
2. Os tipos de segurados do Regime Geral de Previdência Social
2.1. O segurado empregado
Os segurados empregados estão relacionados no art. 11, I da Lei 8.213/91. Deve-se ressaltar, de início, que o conceito de segurado empregado é muito mais amplo que o conceito de trabalhador empregado. Enquanto o art. 3º da CLT determina que “considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”, a legislação previdenciária além de abranger essa relação de emprego definida na CLT, ainda conceitua como segurado empregado outras oito espécies de trabalhadores, são eles: a) aquele que, contratado por empresa de trabalho temporário, definida em legislação específica, presta serviço para atender a necessidade transitória de substituição de pessoal regular e permanente ou a acréscimo extraordinário de serviços de outras empresas; b) o brasileiro ou o estrangeiro domiciliado e contratado no Brasil para trabalhar como empregado em sucursal ou agência de empresa nacional no exterior; c) aquele que presta serviço no Brasil a missão diplomática ou a repartição consular de carreira estrangeira e a órgãos a elas subordinados, ou a membros dessas missões e repartições, excluídos o não-brasileiro sem residência permanente no Brasil e o brasileiro amparado pela legislação previdenciária do país da respectiva missão diplomática ou repartição consular; d) o brasileiro civil que trabalha para a União, no exterior, em organismos oficiais brasileiros ou internacionais dos quais o Brasil seja membro efetivo, ainda que lá domiciliado e contratado, salvo se segurado na forma da legislação vigente do país do domicílio; e) o brasileiro ou estrangeiro domiciliado e contratado no Brasil para trabalhar como empregado em empresa domiciliada no exterior, cuja maioria do capital votante pertença a empresa brasileira de capital nacional; f) o servidor público ocupante de cargo em comissão, sem vínculo efetivo com a União, Autarquias, inclusive em regime especial, e Fundações Públicas Federais; g) o exercente de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, desde que não vinculado a regime próprio de previdência social; h) o empregado de organismo oficial internacional ou estrangeiro em funcionamento no Brasil, salvo quando coberto por regime próprio de previdência social;
2.2. O segurado empregado doméstico
Já quanto aos segurados empregados domésticos, são aqueles que prestam serviço de natureza contínua a pessoa ou família, no âmbito residencial desta, em atividades sem fins lucrativos. Não há diferença da legislação trabalhista.
2.3. O segurado contribuinte individual
Os segurados contribuintes individuais são aqueles que possuem rendimentos, formais ou informais, mas, ao contrário dos segurados empregados,em regra, não mantém um vínculo de trabalho estável e efetivo. Segundo o art. 11, V da Lei 8.213/91 estão classificados da seguinte forma: a) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade agropecuária, a qualquer título, em caráter permanente ou temporário, em área superior a 4 (quatro) módulos fiscais; ou, quando em área igual ou inferior a 4 (quatro) módulos fiscais ou atividade pesqueira, com auxílio de empregados ou por intermédio de prepostos; ou ainda nas hipóteses dos §§ 9o e 10 deste artigo; b) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade de extração mineral - garimpo, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou por intermédio de prepostos, com ou sem o auxílio de empregados, utilizados a qualquer título, ainda que de forma não contínua; c) o ministro de confissão religiosa e o membro de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa;  d) o brasileiro civil que trabalha no exterior para organismo oficial internacional do qual o Brasil é membro efetivo, ainda que lá domiciliado e contratado, salvo quando coberto por regime próprio de previdência social; e) o titular de firma individual urbana ou rural, o diretor não empregado e o membro de conselho de administração de sociedade anônima, o sócio solidário, o sócio de indústria, o sócio gerente e o sócio cotista que recebam remuneração decorrente de seu trabalho em empresa urbana ou rural, e o associado eleito para cargo de direção em cooperativa, associação ou entidade de qualquer natureza ou finalidade, bem como o síndico ou administrador eleito para exercer atividade de direção condominial, desde que recebam remuneração; f) quem presta serviço de natureza urbana ou rural, em caráter eventual, a uma ou mais empresas, sem relação de emprego; g) a pessoa física que exerce, por conta própria, atividade econômica de natureza urbana, com fins lucrativos ou não.
2.4. O segurado trabalhador avulso
O segurado trabalhador avulso é aquele que, sindicalizado ou não, presta serviço de natureza urbana ou rural, a diversas empresas, sem vínculo empregatício, com a intermediação obrigatória do órgão gestor de mão-de-obra, nos termos da Lei nº 8.630, de 25 de fevereiro de 1993, ou do sindicato da categoria, assim considerados: a) o trabalhador que exerce atividade portuária de capatazia, estiva, conferência e conserto de carga, vigilância de embarcação e bloco; b) o trabalhador de estiva de mercadorias de qualquer natureza, inclusive carvão e minério; c) o trabalhador em alvarenga (embarcação para carga e descarga de navios); d) o amarrador de embarcação; e) o ensacador de café, cacau, sal e similares; f) o trabalhador na indústria de extração de sal; g) o carregador de bagagem em porto; h) o prático de barra em porto; i) o guindasteiro; j) o classificador, o movimentador e o empacotador de mercadorias em portos.
2.5. O segurado especial
O segurado especial é a pessoa física residente no imóvel rural ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros, na condição de: a) produtor, seja proprietário, usufrutuário, possuidor, assentado, parceiro ou meeiro outorgados, comodatário ou arrendatário rurais, que explore atividade agropecuária em área de até 4 (quatro) módulos fiscais ou atividade de seringueiro ou extrativista vegetal que exerça suas atividades nos termos do inciso XII do caput do art. 2º da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, e faça dessas atividades o principal meio de vida;  b) pescador artesanal ou a este assemelhado que faça da pesca profissão habitual ou principal meio de vida; c) cônjuge ou companheiro, bem como filho maior de 16 (dezesseis) anos de idade ou a este equiparado, do segurado de que tratam as alíneas a e deste inciso, que, comprovadamente, trabalhem com o grupo familiar respectivo.
Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes.
Porém, não poderá ser considerado como segurado especial o membro de grupo familiar que possuir outra fonte de rendimento, exceto se decorrente de: a) benefício de pensão por morte, auxílio-acidente ou auxílio-reclusão, cujo valor não supere o do menor benefício de prestação continuada da Previdência Social;  b) benefício previdenciário pela participação em plano de previdência complementar instituído nos termos do inciso IV do § 8o deste artigo; c) exercício de atividade remunerada em período de entressafra ou do defeso, não superior a 120 (cento e vinte) dias, corridos ou intercalados, no ano civil, observado o disposto no § 13 do art. 12 da Lei no 8.212, de 24 julho de 1991; d) exercício de mandato eletivo de dirigente sindical de organização da categoria de trabalhadores rurais; e) exercício de mandato de vereador do Município em que desenvolve a atividade rural ou de dirigente de cooperativa rural constituída, exclusivamente, por segurados especiais, observado o disposto no § 13 do art. 12 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991; f) parceria ou meação outorgada na forma e condições estabelecidas no inciso I do § 8o deste artigo; g) atividade artesanal desenvolvida com matéria-prima produzida pelo respectivo grupo familiar, podendo ser utilizada matéria-prima de outra origem, desde que a renda mensal obtida na atividade não exceda ao menor benefício de prestação continuada da Previdência Social; h) atividade artística, desde que em valor mensal inferior ao menor benefício de prestação continuada da Previdência Social.
2.6. O segurado facultativo
O segurado facultativo é aquele  maior de dezesseis anos de idade que se filiar ao Regime Geral de Previdência Social, mediante contribuição, desde que não esteja exercendo atividade remunerada que o enquadre como segurado obrigatório da previdência social. Exemplificativamente, podem ser filiados como segurados facultativos a dona-de-casa; o síndico de condomínio, quando não remunerado; o estudante; o brasileiro que acompanha cônjuge que presta serviço no exterior; aquele que deixou de ser segurado obrigatório da previdência social; o membro de conselho tutelar de que trata o art. 132 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, quando não esteja vinculado a qualquer regime de previdência social;  o bolsista e o estagiário que prestam serviços a empresa de acordo com a Lei nº 6.494, de 1977;  o bolsista que se dedique em tempo integral a pesquisa, curso de especialização, pós-graduação, mestrado ou doutorado, no Brasil ou no exterior, desde que não esteja vinculado a qualquer regime de previdência social; o presidiário que não exerce atividade remunerada nem esteja vinculado a qualquer regime de previdência social; o brasileiro residente ou domiciliado no exterior, salvo se filiado a regime previdenciário de país com o qual o Brasil mantenha acordo internacional; e o segurado recolhido à prisão sob regime fechado ou semi-aberto, que, nesta condição, preste serviço, dentro ou fora da unidade penal, a uma ou mais empresas, com ou sem intermediação da organização carcerária ou entidade afim, ou que exerce atividade artesanal por conta própria.
3. Regras para a manutenção e perda da qualidade de segurado do Regime Geral de Previdência Social
Como é sabido, somente há direitos perante a Previdência enquanto mantida a qualidade de segurado. Assim, estabelece a legislação previdenciária que em determinados casos o segurado conservará todos os seus direitos perante a previdência mesmo que não esteja vertendo contribuições pra o sistema; é o que se chama de período de graça.
Em primeiro lugar, mantém essa qualidade independentemente de contribuição e sem limite de prazo aquele que estiver em gozo de benefício, inclusive durante o período de recebimento de auxílio-acidente ou de auxílio suplementar.
Também, independentemente de estar contribuindo, mantém todos os direitos perante a Previdência, até doze meses após a cessação de benefícios por incapacidade ou após a cessação das contribuições, o segurado que deixar de exercer atividade remunerada abrangida pela Previdência Social ou estiver suspenso ou licenciado sem remuneração. Nesse caso, esse prazo poderá ser de 24 meses  se o segurado já tiver pago mais de cento e vinte contribuições mensais sem interrupção que acarrete a perda da qualidade de segurado. Porém, tanto no primeiro caso (12 meses) quanto no segundo (24 meses), poderão ser acrescidos, passando, a um período de graça de 24 meses ou 36 meses se o segurado estiver desempregado e desde que comprovada esta situação por registro no órgão próprio do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE. Dentre outras formas, a condição de desempregado poderá ser comprovada mediante declaração expedida pelas Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego ou outro órgão do MTE; comprovação do recebimento do seguro-desemprego; ou inscrição cadastral no Sistema Nacional de Emprego - SINE, órgão responsável pela política de emprego nos Estados da federação. Anote-se, entretanto, que o registro no órgão próprio do Ministério do Trabalho e Emprego ou as anotações relativas ao seguro-desemprego deverão estar dentro do período de manutenção da qualidade de segurado de doze ou vinte e quatro meses que o segurado possuir. Por outro lado, essas anotações formam uma presunção relativas de desemprego que poderá ser afastada caso o INSS tenha conhecimento de outras informações do segurado que venham a descaracterizar tal condição.
O segurado obrigatório que, durante o prazo de manutenção da sua qualidade de segurado (doze, vinte e quatro ou trinta e seis meses, conforme o caso), se filiar ao RGPS como facultativo, ao deixar de contribuir nesta última, terá o direito de usufruir o período de graça de sua condição anterior.
Registre-se, outrossim, que a Súmula nº 27 da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais estabelece que “a ausência de registro em órgão do Ministério do Trabalho não impede a comprovação do desemprego por outros meios admitidos em direito”. Ainda, o enunciado da Súmula nº 26 da Advocacia-Geral da União estabelece que  para a concessão de benefício por incapacidade, não será considerada a perda da qualidade de segurado decorrente da própria moléstia incapacitante, mesmo que já tenha extrapolado o limite máximo de 36 meses sem contribuições.
O prazo de 12 meses do período de graça também é aplicado para o segurado acometido de doença de segregação compulsória, contando-se o prazo a partir da cessação da segregação e para o segurado detido ou recluso, contando-se o prazo de 12 meses após a colocação efetiva em liberdade.
No caso de fuga do recolhido à prisão, será descontado do prazo de manutenção da qualidade de segurado a partir da data da fuga, o período de graça já usufruído anteriormente ao recolhimento.
Para o segurado facultativo o prazo de manutenção da qualidade de segurado é de seis meses após a cessação das contribuições. Porém, quando o segurado facultativo estiver recebendo benefício  por incapacidade, além de manter a qualidade de segurado por todo o período do benefício, gozará ainda do status de segurado pelo período de doze meses após a cessação do benefício.
O segurado que se filiar no RGPS na categoria de facultativo durante o período de manutenção da qualidade de segurado decorrente de benefício por incapacidade ou auxílio-reclusão, ao deixar de contribuir, terá o direito de usufruir dos mesmos doze meses, se mais vantajoso.
Será de  três meses após o licenciamento, o período de manutenção da qualidade de segurado para o segurado incorporado às Forças Armadas para prestar serviço militar.
4. Questões específicas de alguns benefícios
Para benefícios requeridos a partir de 25 de julho de 1991, o exercício de atividade rural ocorrido entre atividade urbana, ou vice-versa, assegura a manutenção da qualidade de segurado, quando, entre uma atividade e outra, não ocorreu interrupção que acarretasse a perda dessa qualidade.
 Para os requerimentos de benefícios protocolados a partir de 13 de dezembro de 2002, a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição, inclusive de professor, especial e por idade. Essa mesma regra deverá ser observada para o segurado empregado e trabalhador avulso que comprovem a atividade a partir de novembro de 1991, independente da comprovação do recolhimento das contribuições; e para o segurado contribuinte individual e segurado especial, referidos na alínea “g” do inciso V e inciso VII do art. 11 da Lei nº 8.213, de 1991, desde que comprovem o recolhimento de contribuições após novembro de 1991.
A pensão por morte concedida na vigência da Lei nº 8.213, de 1991, com base no art. 240 do Regulamento dos Benefícios da Previdência Social - RBPS, aprovado pelo Decreto nº 611, de 21 de julho de 1992, sem que tenha sido observada a qualidade de segurado, não está sujeita à revisão específica para a verificação desse requisito, sendo indispensável a sua observância, para os benefícios despachados a partir de 21 de dezembro 1995, data da publicação da ON/INSS/SSBE nº 13, de 20 de dezembro de 1995.
Poderá ser concedida, a qualquer tempo, outra pensão com o mesmo instituidor em decorrência de desdobramento com a anteriormente concedida, e ainda ativa, na forma do caput, para inclusão de novos dependentes, sendo devidas as parcelas somente a partir da data da entrada do requerimento, conforme art. 76 da Lei nº 8.213, de 1991.

Previdenciário

O Concubinato na Previdência Social

Fábio Zambitte Ibrahim
1. Introdução
A previdência social, como instrumento de segurança frente às adversidades da vida, além de contar com prestações em favor do desenvolvimento da família, atende aos grandes males que afligem a pessoa humana, como a idade avançada, a doença, invalidez e, também, a morte.
A cada necessidade social prevista, o sistema protetivo conta com, ao menos, uma prestação previdenciária adequada. No caso da morte, há o pensionamento dos dependentes, assim como, na prisão, benefício assemelhado, conhecido como auxílio-reclusão. Ambos são previstos na Lei nº 8.213/91, a partir dos arts. 74 e 80, respectivamente.
Tomando lugar o evento determinante – o risco coberto – há a concessão do benefício. No caso dos últimos listados, os beneficiários são compostos pelas pessoas que dependem (prisão) ou dependiam (morte) economicamente do segurado. A dependência econômica é o principal elemento caracterizador da condição jurídica de dependente previdenciário, pois a finalidade da proteção social, tanto para segurados como dependentes, é a manutenção de patamar mínimo de bem-estar, capaz de assegurar a vida digna.
O modelo previdenciário brasileiro, até pelas suas raízes do seguro social, adota previsão exaustiva de pessoas que podem enquadrar-se como dependentes econômicos do segurado. Ou seja, em privilégio ao equilíbrio financeiro e atuarial do sistema (cf. art. 201, caput, Constituição), a Lei nº 8.213/91, art. 16, limita a pretensão de dependentes, pois somente os lá relacionados podem demandar prestações no caso de óbito ou prisão do segurado.
2. Os Dependentes no Regime Geral de Previdência Social - RGPS
No RGPS, os dependentes são divididos em três classes, compostas da seguinte forma: I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido; II – os  pais;  III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido (art. 16, Lei nº 8.213/91).
A existência de um dependente de hierarquia superior exclui o direito dos dependentes inferiores. Isto é, se o segurado falece, deixando uma viúva e sua mãe, a pensão por morte será exclusiva da viúva. Após o falecimento de dependente superior, o benefício não se transfere para os dependentes inferiores, só para os de mesma hierarquia. Assim se, no mesmo exemplo anterior, a viúva vem a falecer, a mãe continuará não recebendo a pensão, que deixa de existir.
Os dependentes da classe I têm dependência econômica presumida, exceto o menor tutelado e o enteado, que, assim como os demais (classes II e III), devem comprovar a dependência econômica para receberem o benefício previdenciário[1]. O tema específico deste texto é a classe I, conhecida como classe preferencial, pelo fato de preponderar sobre as demais. Dentro da referida classe, há a figura do cônjuge ou companheiro(a).
Na classe I, a lei reconhece tanto o casamento como a união estável, como não poderia ser diferente. Da mesma forma, tanto o homem como a mulher podem figurar como dependentes do segurado, diferentemente da legislação pretérita, que demandava a incapacidade como requisito para o homem ser dependente de sua esposa. Apesar da atual lei previdenciária somente ter sido publicada em 1991, entendo que desde 05 de outubro de 1988, os homens têm igualdade de direitos para fins de pensão por morte, sob pena de negar eficácia ao texto constitucional. Como se verá nos itens a seguir, havendo esposa e concubina, a divisão do benefício deve ser feita.
Sobre o cônjuge, não há dúvidas quanto a existência do direito,  mas o mesmo não se pode falar da companheira(o). A Lei nº 8.213/91 apresenta indício de solução, ao estabelecer, no art. 16, § 3º, que considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal.
Ou seja, pela análise específica do dispositivo, há como concluir-se que o legislador ordinário privilegiou a visão estrita de união estável, adotada pelo Constituinte, que apesar de conservadora, é prevista na Constituição. O aludido dispositivo constitucional prega que para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Havendo impeditivo ao casamento, contrario sensu, não haveria união estável. Essa é a interpretação dada pela Lei nº 8.213/91.
Em razão da previsão constitucional, há dúvidas de todo tipo quanto à possibilidade de concubinas terem direito a pensão por morte ou auxílio-reclusão. Ou seja, pessoas com impedimento a casamento poderiam postular prestações previdenciárias à semelhança de uma união estável, muitas vezes em concorrência com parceiros legítimos? Para responder adequadamente essa pergunta, deve-se, primeiro, perguntar como aplicar o direito previdenciário.
3. O Direito Previdenciário e a Aplicação de Suas Regras
Os manuais de direito previdenciário, assim como de disciplinas próximas, reconhecem, em sua imensa maioria, a autonomia didática deste ramo do Direito, haja vista a particularidade de algumas normas e mesmo sua aplicação. A hermenêutica jurídica não é segmentada por ramo do direito, mas algumas especificidades podem ser encontradas, até pelas particularidades das relações regidas e pelos fins visados pelas normas.
É certo que a divisão do direito em ramos, no passado, serviu de pretexto para defender-se toda sorte de diferenciação de um determinado segmento jurídico frente aos demais, sob o manto de aparentes especificidades em sua aplicação, o que não existia na maioria dos casos. O direito tributário, no Brasil, foi um exemplo clássico desta patologia hermenêutica[2].
No entanto, não se pode, agora, incorrer no erro oposto, que  é ignorar um dos postulados hermenêuticos mais elementares – o direito cria suas próprias realidades. Não se desvinculando do mundo real, sob pena de ineficácia social, mas justamente para a ele adequar-se, buscando melhor instrumento de justiça e, por conseqüência, de pacificação social.
Novamente, exemplificando por meio de aspectos tributários, é comum que o legislador ordinário estabeleça certas presunções e mesmo ficções que possam viabilizar ou facilitar a aplicação da lei, como uma norma que estabelece algum momento determinado como real ingresso, no Brasil, de mercadoria estrangeira, para fins de incidência de imposto de importação.
Ninguém, seriamente, afirmará que a previsão, em lei tributária, de um aspecto temporal de incidência tributária, para fins de importação, terá de ser reproduzido para todo e qualquer ramo do direito. Não se exclui aqui eventual analogia, mas a vinculação automática da lei tributária a qualquer negócio jurídico relacionado à importação seria falar mais do que lei disse.
Mesmo que tais realidades construídas emanem da Constituição, demandam também interpretação adequada, sob pena de ignorar as particularidades de outros princípios constitucionais, que possuem valores diferentes e, não raramente, mais elevados frente àqueles que justificaram a previsão normativa definidora.
O problema atual do direito previdenciário é, basicamente, de interpretação. Suas regras legais são, quase sempre, aplicadas e interpretadas mediante conjugação e, mesmo, submissão a outros ramos do direito, como se o ramo jurídico da proteção social fosse mero apêndice normativo. Assim, por exemplo, funciona na matéria exacional, na qual decisões sobre incidência ou não incidência de contribuições previdenciárias quase nunca levam em consideração os reflexos no cálculo do benefício do segurado, ou, na parte protetiva, ao interpretar o rol de dependentes do RGPS, como se a união estável devesse se submeter a uma visão estritamente – e unicamente – civilista do tema.
O direito previdenciário possui, como componente elementar na aplicação de suas normas, o aspecto que denomino teleológico-pragmático. Teleológico, pois o fim visado pelo seguro social é a proteção de segurados e dependentes, o que quer dizer que as contribuições vertidas ao sistema, assim como um seguro, visam tutelar, além do próprio segurado, pessoas que dele dependiam economicamente, independente de convenções morais sobre como deve ser uma família.
É certo que a lei pode restringir tal rol, visando o equilíbrio financeiro e atuarial, mas não impor determinada visão dominante de como a vida deve ser vivida. Se a pessoa filiada ao regime previdenciário se engaja em relações homoafetivas ou concubinárias, não é papel do Estado, como mero gestor do sistema, impor, indiretamente, sanções pelas condutas que escapam à moral dominante, como negando um benefício a um dependente econômico do segurado.
Pragmático, já que, para a concessão da prestação, pouco importa se o liame afetivo foi validado pelos instrumentos jurídicos ou religiosos à disposição da sociedade. O que basta é a comprovação da vida em comum, o animus em formar uma sociedade conjugal. A previdência social visa assegurar benefícios que, além de bem-estar mínimo, garantem a própria vida, e tal salvaguarda não deve subsumir-se a formalidades jurídicas, especialmente no Brasil, em que pessoas mais humildes nem sempre atendem a tais questões.     
É também pelo aspecto pragmático que o direito previdenciário trata, de modo igual, o cônjuge divorciado, separado judicialmente ou mesmo separado de fato. A idéia é simples: se não mais vivem juntos, a presunção de dependência econômica é perdida, somente cabendo benefício se comprovada. O mesmo deve valer para a vida em comum, pouco importando o estado civil do segurado ou mesmo sua opção sexual.
Se a isonomia é o valor fundante do Estado social; se a partir dela foram criados os direitos sociais e a busca da liberdade real; se é qualificada como a virtude soberana, deve ser observada em matéria protetiva, cabendo ao Judiciário superar a visão não somente anacrônica, mas mal situada, impondo a abordagem tipicamente civilista na seara previdenciária. As particularidades do direito previdenciário, sempre reconhecidas na esfera teórica, mas raramente aplicadas na prática, impõem uma interpretação peculiar, visando aspectos finalísticos e pragmáticos.
4. Concubinato Previdenciário – Uma Interpretação Adequada
Apesar do exposto, o tema é ainda tormentoso, pois, de acordo com o art. 226, § 3o, da Constituição, o reconhecimento para a união estável seria necessariamente visando ao casamento. Se há impedimento ao matrimônio, o raciocínio, a contrario sensu, seria pela impossibilidade de união estável de segurado ainda casado.
No entanto, a interpretação é por demais abrangente. O fato de uma união entre pessoas de mesmo sexo, por exemplo, também não se subsumir ao disposto no art. 226, § 3º da Constituição, não tem impedido seu reconhecimento, não para fins de casamento, pois não é do que se trata aqui, mas sim para prestações previdenciárias.
A idéia é que o dispositivo aludido, em confronto com outros preceitos constitucionais de maior relevo, traz necessária restrição interpretativa, admitindo que a facilidade constitucional para a união estável, a ser adotada em todos os segmentos do direito, é aquela entre homens e mulheres e, também, voltada ao casamento. No entanto, isso não impede, ao menos, para fins estritamente previdenciários, que se reconheça o direito ao pensionamento para relações homoafetivas ou concubinárias.
Ainda que a Lei nº 8.213/91 faça, expressamente, remissão à Constituição, qualquer estudante iniciante do Curso de Direito tem conhecimento que cabe a lei ser interpretada de acordo com a Constituição, e não o contrário. A Constituição brasileira tem, dentre seus objetivos, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Da mesma forma, o direito à vida é assegurado (art. 5º, caput),  o que, com bastante tranqüilidade, não se limita a vida física, mas uma vida que valha a pena ser vivida, ou seja, na qual a pessoa possa exercitar seus projetos de vida e, também, engajar-se em relações afetivas que maximizem seu bem-estar.
Seria, no mínimo, absurda a tentativa de ampliar a visão dominante de família da sociedade para todos os fins, ainda que retirando validade dos direitos à vida e a liberdade, além de incentivar flagrante preconceito a pessoas que se engajam em tais relações. A interpretação proposta, mediante adequada ponderação, tem a vantagem de reconhecer a eficácia normativa do art. 226, § 3º da Constituição, mas restringi-lo às hipóteses de facilidade à conversão de casamento. Nas demais, pode-se prevalecer a cultura dominante, no qual as sociedades conjugais devem ser entre homens e mulheres e monogâmicas, mas nunca para todo e qualquer fim, especialmente no aspecto previdenciário.
É certo que o direito não pode e não deve afastar-se, por completo, de aspectos culturais, os quais, inevitavelmente, regem, em alguma medida, a vida em sociedade. Um ideal abstrato de liberdade não pode ser subsumido a toda e qualquer sociedade, pois cada uma apresenta valores e histórias diversas, que devem ser sopesadas pelo Direito. Ainda que alguns setores da sociedade brasileira vejam com naturalidade as relações poligâmicas, é certo que a moral dominante é a monogamia. O Direito não recusa isso, mas ignorar a existência da poligamia e, pior, excluir prestações previdenciárias a tais situações, é injusto e mesmo inconstitucional.
Na seara protetiva, uma companheira ou companheiro é pessoa que possui animus de convivência com o segurado, dividindo vida em comum e buscando uma sociedade conjugal, por afinidade de espírito e busca da plena realização. Se são impedidos, por lei, de contrair núpcias, é tema de total desimportância no meio previdenciário. Nunca é demais lembrar da possibilidade de criar da lei conceitos próprios para fins previdenciários – como a figura do equiparado a filho – ou mesmo adaptar alguns já existentes, como o(a) de companheiro(a).
Não há qualquer normatização legal de equiparados a filho fora do direito previdenciário e, por isso, não há problema concreto na aplicação de tal norma. Por tal motivo, tenho dito, de lege ferenda, que muito melhor seria a lei previdenciária prever, ao invés do signo companheira(o), a figura do equiparado à cônjuge. Com isso, magicamente, a dificuldade hoje criada, em grande parte, por preconceito e perfeccionismo ético de como deve ser a vida privada, deixaria de existir.
O melhor, sem dúvida, seria a terminologia diferenciada. Mas como essa ainda não existe, cabe a adequação interpretativa do signo companheira(o), no aspecto previdenciário, reconhecendo as especificidades deste ramo protetivo. Como conclusão natural, entendo que o art. 16, § 3º da Lei nº 8.213/91 é inconstitucional, ainda que o impedimento ao casamento seja restrito ao dependente, e não ao segurado.
Se determinado segurado, de modo flagrantemente imoral, ou mesmo ilegal, tenha relação não eventual com mais de uma pessoa, ou mesmo indevidamente casado (bigamia), não há razão plausível para, em caso de morte do segurado, prejudicar as pessoas com as quais se mantinha a relação continuada. Se, por exemplo, o segurado falecido engajou-se em união estável paralela, com duas pessoas diferentes e simultaneamente, quem terá direito ao benefício? Se os Tribunais não pretendem estabelecer alguma espécie de corrida previdenciária, é necessário admitir a divisão de benefícios em hipóteses de vida em comum, pouco importando o rótulo jurídico dado.
5. Visão Atual dos Tribunais
Administrativamente, o tema nunca apresentou problemas, tendo o INSS, tradicionalmente, em situações de concubinato, dividido a pensão por morte ou auxílio-reclusão com a esposa, desde que ainda houvesse vida em comum.Apesar disso, é sabido que o tema é socialmente problemático, em especial quando a vida dupla do segurado ou segurada surge após seu falecimento.
Nestas situações, é dever do INSS notificar a parte já qualificada como dependente, de modo a permitir o contraditório antes de admitir outra pessoa na condição de companheira(o). Assim dispõe o art. 24, parágrafo único, da Portaria MPS no 713/93.
Já no Judiciário, a questão tem se mostrado controvertida, especialmente nos últimos anos. A Corte Constitucional também, ao se deparar com um servidor falecido com esposa e concubina, determinou que a pensão seria devida exclusivamente à esposa, alegando que concubinato não se iguala à união estável e, portanto, restaria à margem da Constituição. Entendeu o Tribunal que, enquanto a união estável tem a pretensão de tornar-se casamento, o concubinato visa exatamente a pôr fim ao mesmo.[3]
Da mesma forma, o STJ negou pretensão de ex-cônjuge que havia voltado a viver com o segurado, formando sociedade de fato, pelo fato deste se encontrar em união estável com terceira pessoa[4]. Lamentável que tais visões ignoram o aspecto protetivo da previdência social, que não se importa com os aspectos formais da união entre duas pessoas, mas sim com o desamparo econômico quando da morte de uma delas.
Piorando a situação, o Decreto no 6.384/08, dando nova redação ao art. 16, § 6o, do Regulamento da Previdência Social - RPS, aprovado pelo Decreto nº 3.048/99, passa a rezar que considera-se união estável aquela configurada na convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, estabelecida com intenção de constituição de família, observado o § 1o do art. 1.723 do Código Civil. A remessa ao Código Civil dá a impressão de uma tentativa do Poder Executivo em buscar a visão tipicamente civilista da união estável ao direito previdenciário, o que seria evidente absurdo devido ao temperamento necessário das normas sociais, especialmente quando tratam da garantia do mínimo existencial.
Em precedente mais recente do STF, desta vez tratando de pensionistas do RGPS, a Corte manteve seu entendimento, ao afirmar que, apesar de o Código Civil versar a união estável como núcleo familiar, excepciona a proteção do Estado quando existente impedimento para o casamento relativamente aos integrantes da união, sendo que, se um deles é casado, esse estado civil apenas deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato (RE 590779/ES, rel. Min. Marco Aurélio, 10/2/2009). Data maxima venia, a jurisprudência que começa a se formar é gravemente equivocada, e, muito provavelmente, acabará por estimular uma mudança no entendimento administrativo, o qual, até então, admitia a divisão entre esposa e concubina. Como já dito, o pensamento tipicamente civilista não encontra respaldo pleno frente aos direitos sociais, especialmente aqueles que visam assegurar a vida digna. Não admitir a divisão de pensão nestas hipóteses será, sem dúvida, condenar dependentes previdenciariamente legítimos à miséria.
6. Conclusão
Para fins estritamente previdenciários, pouco importa se a união estável visa ao casamento e o concubinato não; irrelevante para o sistema se a pessoa agiu de boa ou má-fé na nova união, mas sim o singelo fato de que uma nova sociedade familiar foi formada, ainda que oficiosamente, e não pode a lei pretender desconstituir os fatos, sob pena de ineficácia social.
Ainda que, por exemplo, não se tratasse de concubinato, mas se a união não fosse notória, devido ao pudor das partes envolvidas, estaria também o companheiro sobrevivente condenado ao desamparo, por não atender a concepção clássica da publicidade da união estável? Certamente não. A proteção social não se subsume a uma concepção ideal de vida e família; não visa impor projetos de vida ou condutas dentro da moral dominante, da mesma forma não se trata de chancelar uniões heterodoxas ou contrárias à moral dominante, mas sim assegurar os meios mínimos de vida aos segurados e  seus dependentes econômicos.
Não é, também, benesse estatal ou caridade alheia, mas forma de seguro social atuarialmente financiado para atender a tais situações, como o concubinato, sempre admitidas, que não podem ficar ao largo do sistema por contrariar a moralidade dominante da sociedade e mesmo do direito privado sobre o que deve ser uma família. Admitir, em tais casos, a prevalência de um conceito de família e união estável, ainda que previsto na Constituição, em detrimento do direito à vida e à previdência social (igualmente previstos na Constituição), é chegar a um resultado inadequado de ponderação, afastando aspectos mais relevantes do bem-estar social em favor de uma moralidade dominante.

A aplicação correta do direito previdenciário não implica, como possa parecer, uma necessária ampliação dos beneficiários, mas sim uma adequação à sua finalidade protetiva, afastada de qualquer tipo de perfeccionismo ético. Sem dúvida isso pode gerar ampliações de prestações, como foi a aceitação da união homoafetiva, mas há restrições, como a negativa de benefício para cônjuge separado de fato, salvo se comprovada a dependência econômica, pois se não mais vivem juntos, a premissa protetiva é que não mais dependência, pouco importando a que título foi feita a separação. Não se trata de alargar ou reduzir benefícios, mas somente aplicá-los de acordo com os ideais de bem-estar e justiça social.