Powered By Blogger

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Previdenciário

 

Questões práticas sobre a competência da justiça comum estadual nas ações acidentárias

Aline Machado Weber
 
 

Resumo: A despeito da sua aparente singeleza a matéria acidentária consiste em verdade em ponto de intersecção entre a justiça comum a justiça federal e a justiça laboral. Dada a relevância da discussão teve ela repercussão geral reconhecida pelo STF. A despeito de já julgado o recurso com reafirmação da jurisprudência do Supremo porém a prática tem demonstrado que a divisão da competência para demandas acidentárias na forma posta pela Constituição ainda suscita inúmeras discussões.
Sumário: 1. Introdução. 2. Contornos da demanda acidentária em face do INSS. 3. Critérios para fixação de competência em matéria acidentária. 4 Questões práticas. 5. Considerações finais.
1. Introdução
Demandas previdenciárias fazem parte do cotidiano do Poder Judiciário tanto na esfera federal como na estadual. A regra geral, considerando que tais ações se dão em face do Instituto Nacional do Seguro Social, autarquia pública federal, é de que sejam processadas e julgadas na Justiça Federal, quer nas varas federais, quer no âmbito dos juizados especiais federais. Em matéria previdenciária, contudo, há uma exceção constitucional expressa à competência da justiça federal: as causas relativas a acidentes de trabalho. Para apreciar tais ações, é competente a justiça estadual comum.
À vista da previsão constitucional, essa divisão de competências parece singela: em se estando diante de acidente do trabalho ou equiparados, incluindo doença profissional ou do trabalho, ou seja, havendo nexo causal entre a incapacidade/morte e o trabalho, a competência seria absoluta da justiça estadual comum; nos demais casos, a competência seria da justiça federal. Na prática, contudo, há um sem número de controvérsias em torno da matéria. Trata-se, por exemplo, de situações em que, conquanto haja benefício acidentário em discussão, o cerne da demanda diz com a revisão da renda do benefício, ou seu reajustamento, ou cumulação com outro benefício não acidentário, bem assim quando há dúvida sobre a própria natureza acidentária da pretensão ou, enfim, quando a vinculação do pedido a acidente laboral somente é verificada ao longo da instrução processual.
Dada a relevância da discussão, teve ela repercussão geral reconhecida pelo STF. Mas, a despeito de já julgado o recurso, com reafirmação da jurisprudência do Supremo, a prática tem demonstrado que a divisão da competência na forma posta pela Constituição ainda suscita inúmeras discussões.
2. Contornos da demanda acidentária em face do INSS
A consequência previdenciária de um agravo sofrido pelo segurado em decorrência de um acidente do trabalho consiste no implemento de alguma prestação social por parte do INSS, as quais, nos termos do art. 18 da Lei n.º 8.213/91, consistem em benefícios e serviços. Daí se falar em auxílio-doença acidentário, aposentadoria por invalidez acidentária, auxílio-acidente, reabilitação profissional e pensão por morte acidentária.
Nessa matéria, outrossim, dispensa-se, para qualquer das benesses antes referidas, a exigência da carência mínima, a teor do art. 26 da Lei n.º 8.213/91. Além disso, o gozo de benefício acidentário por incapacidade enseja estabilidade provisória ao empregado, na forma do art. 118 da mesma lei. De outra parte, como os benefícios acidentários são oriundos da relação de trabalho, somente são devidos ao segurado empregado, ao trabalhador avulso e ao segurado especial, estando excluídos tanto os segurados contribuintes individuais como os facultativos e os domésticos. Conquanto a EC 72/2013 tenha estendido tais benesses aos trabalhadores domésticos, a matéria ainda não foi regulamentada por lei.
Para que faça jus à proteção previdenciária acidentária, compete ao segurado comprovar, primeiramente, a ocorrência do acidente laboral ou a ele equiparado, ou seja, incumbe-lhe provar, alternativamente, o acidente ocorrido pelo exercício do trabalho, a doença ocupacional (doença profissional ou doença do trabalho), ou, ainda, o acidente de trabalho por equiparação, na forma do art. 21 da Lei de Benefícios. Também é necessário que haja relação direta entre o acidente e o agravo sofrido, ou seja, exige-se a configuração do chamado nexo técnico entre o agravo à saúde do segurado e o trabalho por ele desenvolvido. Por fim, necessária a comprovação do requisito atinente à incapacitação, à redução da capacidade laboral ou à morte relacionada ao acidente laboral. Essas, em síntese, as questões a serem dirimidas numa ação tipicamente acidentária movida em face do INSS.
3. Critérios para fixação de competência em matéria acidentária
O art. 109, I, da atual Constituição da República prevê que a competência da justiça federal para demandas previdenciárias é absoluta, porque inserida em sua competência ratione personae, ou seja, aquela fixada em razão da presença do ente federal na lide. Foi prevista, porém, uma exceção expressa, atinente a uma natureza de benefícios previdenciários específica: as causas relativas a acidente de trabalho. Na mesma linha da Constituição, a Lei n.º 8.213/91 previu, em seu art. 129, II, que os litígios e medidas cautelares relativos a acidentes do trabalho são apreciados, na via judicial, pela Justiça dos Estados e do Distrito Federal.
A matéria afeta à competência para processar e julgar demandas acidentárias não é nova. A fixação da competência da justiça estadual comum já vinha prevista nas Constituições anteriores e foi objeto da Súmula 501 do STF, datada de 1969, segundo a qual “compete à justiça ordinária estadual o processo e o julgamento, em ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista”, bem assim da Súmula 235 do mesmo Supremo, que, editada ainda sob a égide da Constituição de 1947, prescreve que “é competente para a ação de acidente do trabalho a justiça cível comum, inclusive em segunda instância, ainda que seja parte autarquia seguradora”. Mais recentemente, também a Súmula nº 15 do Superior Tribunal de Justiça assentou que “compete à Justiça estadual processar e julgar os litígios decorrentes de acidentes do trabalho.”
É certo que na competência acidentária da justiça comum não se incluem as ações atinentes à indenização por danos morais ou patrimoniais decorrentes de acidentes laborais. Para tanto, é competente a justiça do trabalho, conforme Súmula Vinculante 22.[1] Da mesma forma, também não se inclui na competência da justiça comum o reconhecimento do vínculo empregatício, ainda que necessário para a configuração de acidente laboral típico e, por conseguinte, para concessão de benefício previdenciário de natureza acidentária.
De forma diversa, incluem-se na competência da justiça comum os pedidos de concessão, restabelecimento ou revisão de benefício acidentário. Dito de outro modo, para que a ação tenha lugar na justiça comum, a natureza do benefício postulado – ou seja, a causa de pedir deduzida na inicial – deve decorrer do que se entende por acidente de trabalho ou a ele equiparado.
O Supremo Tribunal Federal sempre deu interpretação restritiva à exceção do art. 109, I, da Constituição, relativamente às causas acidentárias, tendo firmado sua jurisprudência no sentido de que “quando o INSS figurar como parte ou tiver interesse na matéria, a competência é da Justiça Federal”.[2] Daí que aquele Tribunal entendeu, por exemplo, que a possibilidade ou não de cumulação de proventos da aposentadoria com auxílio suplementar não seria matéria de competência da Justiça comum, porque não cuidaria exclusivamente de acidente do trabalho.[3] A matéria foi reanalisada por aquela Corte por ocasião do RE 638483-PB, que teve repercussão geral reconhecida (tema 414 competência para processar e julgar ação em que se discute a prestação de benefícios previdenciários decorrentes de acidentes de trabalho). Na oportunidade, o Supremo reafirmou sua jurisprudência dominante, manifestando-se no sentido de que a justiça federal não teria competência para apreciar pleito de restabelecimento de benefício acidentário, porque “compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas relativas ao restabelecimento de benefícios previdenciários decorrentes de acidentes de trabalho.[4]
Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, ao dirimir conflitos de competência suscitados entre o juízo federal e o estadual em demandas previdenciárias, em geral confere à exceção constitucional interpretação menos restritiva. Por isso mesmo, recentemente sua 1ª Seção alterou anterior entendimento e decidiu que demandas atinentes à pensão por morte derivada de acidente do trabalho e revisionais de benefícios acidentários são de competência da justiça estadual, ao fundamento de que “compete à Justiça comum dos Estados apreciar e julgar as ações acidentárias, que são aquelas propostas pelo segurado contra o Instituto Nacional do Seguro Social, visando ao benefício, aos serviços previdenciários e respectivas revisões correspondentes ao acidente do trabalho.”[5]
Nessa linha, o que o Superior Tribunal de Justiça assentou recentemente é que a definição da competência para a causa – acidentária ou não – se dá levando em consideração os termos da demanda. Logo, se a parte postula benefício previdenciário ou, ainda, benefício decorrente de acidente de qualquer natureza, a competência é da justiça federal; diante de pedido de concessão ou restabelecimento de benefício com natureza acidentária, aí é competente a justiça estadual.[6] É o pedido formulado pela parte, portanto, que, ao delimitar a lide, informa se a competência para sua apreciação é da justiça estadual comum ou da justiça federal: havendo menção, como causa de pedir, a acidente de trabalho, a demanda será tida como acidentária, fazendo incidir, por conseguinte, a exceção constitucional.
4 Questões práticas
A despeito da sua aparente singeleza, a matéria acidentária consiste, em verdade, em ponto de intersecção entre a justiça comum, a justiça federal e a justiça laboral.
Não se olvida que ainda há alguma controvérsia quanto à competência da justiça laboral, e não da justiça comum, para apreciar pleitos indenizatórios em face do empregador em razão de acidente de trabalho. No entanto, à vista da divisão entre competência da justiça trabalhista e da justiça comum após a EC 45/2004 e do advento da Súmula Vinculante 22, a impossibilidade de análise da pretensão de indenização por acidente laboral pela justiça comum, em geral, não enseja maiores dificuldades no âmbito das demandas acidentárias movidas em face do INSS.
O mesmo não ocorre, entretanto, quando há controvérsia quanto à própria existência do vínculo laboral. É que não raro a demanda acidentária é movida em face do Instituto Nacional do Seguro Social para fins de concessão de auxílio-doença acidentário ou reconhecimento da natureza acidentária de benesse concedida administrativamente sem tal caráter, tendo como causa de pedir, por conseguinte, a ocorrência de um acidente laboral típico. Veja-se que, a despeito de o acidente laboral ser condição fundamental para a concessão de benefício de natureza acidentária, soma-se a necessidade de o segurado comprovar também sua condição de empregado, segurado especial ou avulso, na medida em que o contribuinte individual não faz jus a tais benesses.
Ora, não havendo relação de trabalho comprovada, a análise de mérito da postulação encontrará óbice inafastável na questão prejudicial quanto à sua existência, sobre a qual não tem competência o juízo comum. À vista da distribuição de competências jurisdicionais, portanto, pode-se dar uma verdadeira peregrinação por parte do segurado, a quem caberá, primeiro, intentar reclamatória trabalhista em face do empregador para comprovação de seu vínculo laboral e, depois, aí sim, postular o benefício acidentário, primeiro perante a autarquia previdenciária, e, se negado, em ulterior ação judicial acidentária perante a justiça estadual comum. 
Na relação entre competência da justiça federal e competência da justiça estadual comum, por sua vez, há um primeiro problema de ordem prática que é, no mínimo, curioso. Nas comarcas onde há justiça federal instalada, a justiça estadual comum somente tem competência para processar e julgar demandas previdenciárias tipicamente acidentárias. Assim, se, ao final de uma ação acidentária na qual se pleiteia auxílio-doença, conquanto comprovada a necessidade do benefício por incapacidade, ou seja, a efetiva incapacitação temporária do segurado, não for provado também o nexo causal entre o acidente e o agravo, a solução da lide será pela improcedência.
Acaso, porém, a comarca não seja sede da justiça federal, o juízo estadual comum terá competência para apreciar tanto a matéria acidentária como, em regime de competência delegada, todas as pretensões de natureza previdenciária em face do INSS, na dicção do inciso II do art. 108, e §§3º e 4º do art. 109, da Constituição da República. Por conseguinte, o juízo estadual comum de comarca onde não há sede na justiça federal, em idêntica situação, poderá dar solução diversa à lide: ainda que não comprovada a natureza acidentária do agravo, poderá, no uso da sua competência delegada, concluir pelo preenchimento dos requisitos para a concessão do mesmo benefício – auxílio-doença - de natureza previdenciária (ou seja, não-acidentário), sem a necessidade, portanto, de o segurado intentar uma segunda demanda para obter o bem da vida.
Há outra controvérsia que, mesmo com o julgamento da repercussão geral pelo STF, está longe de ser pacificada. Trata-se das situações em que o benefício em questão tem natureza acidentária, mas a pretensão em si não enseja qualquer discussão afeto a acidente de trabalho no curso da ação judicial. Por vezes, almeja-se a revisão ou o reajustamento do valor de um benefício que tem natureza acidentária. Em casos tais, a discussão não envolve o acidente laboral, que é questão incontroversa; a lide diz com um determinado índice ou uma determinada forma de cálculo afeta a todos os benefícios, acidentários ou não. Noutros casos, a discussão se relaciona com a possibilidade de cumulação de benefícios, um deles acidentário. Da mesma forma, o acidente de trabalho, aqui, nada influi para o deslinde da demanda, consistindo apenas no predicado de um dos benefícios cuja cumulação com outro é o verdadeiro objeto da ação.
Nessas hipóteses, a interpretação mais ou menos restritiva quanto à exceção do art. 109, I, da CF é que definirá a competência para processar e julgar a causa. Em geral, e embora haja julgados esparsos do STF em sentido diverso, tem-se entendido que a competência para apreciar tais demandas é da justiça estadual comum. A realidade, no entanto, é que no mais das vezes são ações repetitivas no âmbito da justiça federal e que lá teriam sede natural, porque a forma de cálculo, a manutenção e o reajustamento das benesses acidentárias nada difere dos benefícios previdenciários equivalentes, mas que não têm o predicado acidentário. Talvez por isso se verifique que, na prática, essas ações correm concomitantemente em ambas as esferas do Judiciário brasileiro, a depender da opção do autor e do entendimento do juízo ordinário, que reconhece ou não sua incompetência.
Por outro viés, e levando em conta que, na esteira da jurisprudência do STJ, a natureza acidentária da demanda se dá com base nos termos da inicial, complexa é a solução da lide quando verificado somente ao final da instrução processual que o juízo processante não é competente para seu julgamento. Na justiça estadual comum onde há sede da justiça federal, a solução, quando não comprovada a natureza acidentária alegada na inicial, é pela improcedência dos pedidos. De modo diverso, na justiça federal o que se verifica com frequência é o reconhecimento da incompetência do juízo depois de já triangularizada a relação processual e, mais que isso, depois de já encerrada a instrução do processo. Assim, em demandas versando sobre a concessão de benefício por incapacidade nas quais se verifique, na instrução, nexo causal entre o agravo e o labor, em geral se dá ou a extinção do feito sem resolução de mérito ou o reconhecimento da incompetência, com remessa do feito pela à justiça estadual comum.
Em casos tais, portanto, há discrepância no tratamento das demandas acidentárias. Quando a incompetência do juízo somente se verifica depois de encerrada a instrução processual, ora se extingue o feito sem resolução de mérito; ora se reconhece a incompetência e se remetem os autos ao juízo competente para proceder tão-só ao seu julgamento; ora se julga improcedente o pedido. Aqui, pois, transparece última e relevante questão quanto às demandas sobre benefício acidentário por incapacidade: poderia o juízo federal, à vista da conclusão do perito quanto à existência de nexo causal entre a incapacidade e o trabalho, ainda assim conceder o benefício previdenciário, ou, em sentido diverso, poderia o juiz de direito conceder o benefício não-acidentário, acaso comprovada a incapacidade, mas não seu alegado caráter acidentário?
A resposta para ambas as questões parece negativa. No entanto, tal impossibilidade tem resultado em prolongamento ou repetição de demandas, por vezes inclusive com reiteração desnecessária da instrução processual – a qual, rememore-se, consiste geralmente em prova médico-pericial, com pagamento de elevados valores a título de honorários -.
É claro que o art. 113 do Código de Processo Civil prevê que a incompetência absoluta pode ser alegada a qualquer tempo. No entanto, define-se a competência pela causa de pedir que, apresentada de início, tem aptidão para gerar a estabilização da demanda. As vicissitudes da instrução probatória não deveriam afetar a competência jurisdicional que já se consolidou, embora, obviamente, condicionem o julgamento de mérito adequado à controvérsia. Demais disso, irrompe notória a falta de efeitos práticos (fora o assoberbamento maior do aparelho judiciário) em reconhecer a incompetência depois de já encetada a instrução processual, o que, no mínimo, permite duvidar da lógica e razão de ser da exceção constitucional nos dias de hoje.
4. Considerações finais
As controvérsias quanto às regras de competência têm raízes históricas, sendo possível fixar seu termo inicial na extinção da justiça federal em 1937, quando coube aos juízes do Poder Judiciário dos Estados julgar as ações envolvendo interesses da União. Em matéria acidentária, a exceção constitucional hoje prevista no art. 109, I, faz com que permaneça ela no âmbito de competência da justiça estadual comum, ainda que a realidade ateste que a justiça federal, na forma hoje instituída, não apenas é a sede natural das ações previdenciárias, como, a partir da criação dos juizados especiais federais, tem permitido andamento mais célere para demandas da espécie, à vista da sua natureza alimentar e por conta da simplificação dos ritos.
A despeito da causa de pedir específica, a concessão, restabelecimento ou revisão de benefício acidentário pouco difere da pretensão em torno de benefício sem a nota acidentária. Demais disso, se o acidente laboral exige do Estado proteção especial e, por conseguinte, prestação jurisdicional mais eficaz, a realidade demonstra que tal desiderato não tem sido alcançado, seja porque os ritos ordinário e sumário não se afiguram adequados para trazer celeridade às demandas, seja porque são raras as vezes em que a vara da justiça estadual comum dispõe de competência exclusiva para demandas acidentárias.
Assim, a prática processual atesta que, ainda hoje, a divisão de competências na forma posta na Constituição enseja controvérsias e, com frequência, dupla e desnecessária movimentação da máquina judiciária. Daí porque, passados vinte e cinco anos de seu advento, talvez seja momento de questionar e rediscutir os fundamentos para a manutenção, ainda hoje, da competência da justiça comum para ações acidentárias.

Previdenciário

 

A aposentadoria por idade mista – entre o segurado especial e o trabalhador urbano

Wesley Adileu Gomes e Silva
 
 

Resumo: Os trabalhadores rurais que não comprovarem o efetivo exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento da aposentadoria por idade, por tempo igual ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício para as demais categorias de segurado, poderão utilizar períodos de contribuição sob outras categorias de segurado. Obterá, então, uma aposentadoria, que não se poderá dizer que é exclusivamente urbana nem rural. Esta aposentadoria por idade é híbrida, mista.
Palavras-chave: Aposentadoria mista. Trabalhador rural.
Sumário: 1 Introdução. 2 Conceito de previdência social 3 Aposentadoria por idade do trabalhador rural. 3.1 Contingência protegida. 3.2 fundamento normativo. 3.3 Requisitos. 4 Aposentadoria por idade mista. Conclusão. Referências
O trabalho rural em regime de economia familiar tem um valor social intrínseco, e a Constituição da República Federativa do Brasil, atenta a este fato, cuidou de tratar particularmente do agente desta atividade, o que foi seguido pelas normas jurídicas regulamentadoras.
Uma das normas regulamentadoras – a Lei nº 8.213/91 – estabeleceu em seu corpo permanente, no que se refere à aposentadoria por idade, que fica garantida a concessão deste benefício, bastando para tanto que o trabalhador comprove o exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício. O tempo comprovado deve equivaler ao número de meses correspondentes à carência do benefício contributivo, vale dizer, 180 meses.
Porém, muitos trabalhadores rurais, em decorrência das adversidades do campo, vêm se deslocar para a cidade. Permanecem alguns anos de sua vida, mas não tempo suficiente para, ao atingir da idade, aposentar-se na condição de trabalhador urbano. Tampouco consegue tempo suficiente para aposentar-se com o tempo exclusivamente rural. Nasce aí o dilema daquele que principiou seu trabalho no campo, imaginou um dia que o labor da cidade seria mais vantajoso, mas que, diante das dificuldades da vida na cidade, retorna para o campo já margeando os 60 anos de idade, e quando vinha atingir esta idade, não lograva êxito em aposentar-se.
O legislador, assim, no intento de solucionar este impasse provocado pelas alternâncias dos êxodos rurais e urbanos, editou a Lei nº 11.718/2008, que incluiu os parágrafos 3º e 4º ao art. 48 da Lei nº 8.213/91, o que fez surgir uma nova maneira de aposentar-se, mediante a concessão de um benefício não voltado totalmente ao homem do campo nem totalmente ao homem da cidade. Uma aposentadoria com aspecto híbrido, a qual chamaremos aqui de aposentadoria por idade mista.
2. CONCEITO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Título VII, "Da Ordem Social", traz – em seu Capítulo II – disposições relativas à Seguridade Social.
Nos exatos termos do artigo 194 da Constituição, a Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Pela definição constitucional, já é possível notar que a Seguridade Social é gênero, da qual são espécies a Saúde, a Previdência e a Assistência Social, de modo que não se deve fazer confusão entre estas partes conceituais, sobretudo entre previdência e assistência social. Cada uma das três áreas da Seguridade Social é dotada de princípios próprios e diferentes objetivos específicos.
A finalidade precípua da Previdência Social é assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis à manutenção de sua condição econômica, quando esta se encontra inviabilizada por contingências, tais quais: incapacidade, idade avançada, tempo de contribuição, maternidade, reclusão ou morte.
Enfim, na linha exata da Constituição, em seu art. 201, cabe conceituar previdência social como um seguro social organizado sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados os critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial.
Não obstante a clareza do que deve entender por previdência, a previdência do trabalhador rural não raro é confundida com a assistência social, devido à aproximação com os princípios informadores desta, sobretudo o da gratuidade da prestação, com ênfase na proteção à família de baixa renda.
Tal confusão deriva-se, sobretudo, do fato de a concessão dos benefícios assistenciais não serem oriundos de contribuição direta pelos seus beneficiários e, no caso da aposentadoria ao segurado especial, as estatísticas demonstram sucessivos déficits cobertos pelas contribuições dos segurados urbanos.
Diante de tal sistema, como veremos, tem bastado a mera comprovação da atividade, sem nenhuma preocupação com o equilíbrio financeiro e atuarial, o que seria impensável em um sistema de seguro. Todavia, não é por ser um seguro que a previdência se afasta de seu fim social. No magistério de João Batista Lazzari (2009, p.51),
cabe à Previdência Social também a incumbência da redução das desigualdades sociais e econômicas, mediante uma política de redistribuição de renda, retirando maiores contribuições das camadas mais favorecidas e, com isso, concedendo benefícios a populações de baixa renda.
É no ideal desta previdência social (rural), ora contributiva, ora assistencialista, que este artigo irá conduzir seus argumentos, detendo-se, sobretudo, aos aspectos mais ligados ao objeto de pesquisa, qual seja: a qualidade de segurado especial e suas implicações na concessão da aposentadoria por idade.
A aposentadoria por idade dos trabalhadores rurais é uma das preocupações das autoridades governamentais em matéria de Previdência Social, em face da suposta facilidade em requerer o benefício sem que tenha havido de fato trabalho nesta condição. (CASTRO, 2009, p. 591).
Comentando o assunto, Sergio Pinto Martins (apud CASTRO, 2009, p. 591) se posiciona a respeito do tema:
“As aposentadorias dos trabalhadores rurais sem contribuição têm trazido muita fraude, como se tem verificado, porém nada impede que o trabalhador rural recolha normalmente a sua contribuição para ter direito a uma aposentadoria comum e igual à do trabalhador urbano.
Se o sistema para o trabalhador rural continuar em parte não-contributivo, já que há a possibilidade de opção, é claro que o referido trabalhador vai optar por não contribuir, daí a necessidade de modificação do referido sistema.”
Realmente, há muitas fraudes na concessão de benefícios previdenciários, sobretudo devido à fuga de muitos brasileiros que, vistos em situação de penúria frente aos anos de informalidade, encontram nos benefícios rurais a última chance, ou pelo menos a mais imediata, de garantir recursos para sua sobrevivência.
Todavia, abstraídas as alegações reais de fraude, a verdade é que o homem do campo não tem o necessário conhecimento das normas legais a respeito de Previdência, de modo que cobrar que ele venha a contribuir, inclusive pelo período pretérito, quando sequer havia lei que assim exigisse, não condiz com uma política voltada para a população economicamente hipossuficiente. (CASTRO, 2009, p. 591)
3.1. CONTINGÊNCIA PROTEGIDA
A Previdência Social tem por escopo garantir meios de subsistência aos segurados e seus dependentes quando da superveniência de certas contingências ou riscos, eleitos segundos critérios de seletividade.
No caso, a aposentadoria por idade não visa proteger o segurado quanto a incapacidades patológicas não programáveis, tampouco visa proteger diretamente seus dependentes, senão visa proteger o segurado que, por atingir uma avançada idade, não mais se justifica permanecer obrigado a trabalhar até o fim de sua vida. A Previdência abre um espaço para que o segurado, que já depositou sua cota de participação social, possa descansar pelos dias que lhes restam, de maneira mais proveitosa quanto possível, sem ser compelido a continuar inserido num mercado de trabalho que, muitas vezes, o discrimina.
Assim, ainda que o segurado tenha condições técnicas e fisiológicas para continuar no mercado de trabalho, o Estado brasileiro estabelece uma presunção de inatividade, e, desta maneira, todos saem ganhando.
Um problema é quando o segurado, que lhe teve concedido a aposentadoria por idade continua a trabalhar, o que pode parecer um contra-senso.
“Assim, de um lado, o sistema presume que a pessoa com idade avançada apresenta sua capacidade fisiológica diminuída; por outro, o próprio ordenamento admite que o aposentado exerça atividade laborativa, o que é totalmente ilógico sob o ponto de vista jurídico. Assim, entendemos que, não obstante a manutenção da presunção absoluta de incapacidade fisiológica em razão da idade avançada, o direito à percepção do benefício somente seria possível quando presente o abandono de toda e qualquer atividade remunerada por parte do potencial beneficiário. Este não impede que, posteriormente, o interessado possa usufruir o seu benefício após a cessação da atividade laboral.
No entanto, frise-se que essa não foi a opção adotada pelo sistema pátrio, que não impede que um indivíduo seja beneficiário de aposentadoria por idade e, simultaneamente, exerça atividade remunerada, devendo, na qualidade de segurado obrigatório, verter contribuições”.(SILVA, 2008, pp. 187-188)
Do exposto, vê-se que a Previdência Social brasileira protege a idade – e não a incapacidade pelo fato da idade-, contingência esta que emprestou o nome ao benefício, que se titula “aposentadoria por idade”. É uma expressão relativamente nova, surgida após a lei nº 8.213/91, visto que, antes desta, o instituto era nomeado “aposentadoria por velhice”, que passou a ser repudiada por indicar uma ideia discriminatória em face dos dias atuais, onde se exige maior respeito à pessoa idosa.
O benefício da aposentadoria por idade foi criado pela Lei Orgânica da Previdência Social – Lei n° 3.807, de 26 de agosto de 1960, que unificou a legislação referente aos Institutos de Aposentadorias e Pensões, mas não contemplou o trabalhador rural, que, em 1963, através do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – FUNRURAL, promoveu a inclusão desta categoria de segurado.
Todavia, foi com a atual Lei de Benefícios (Lei nº 8213/91) que, observando comando constitucional, equiparou-se o trabalhador urbano e rural no que se refere ao direito ao benefício, cuja positivação legal encontra-se nos artigos 48 a 51.
O Decreto nº 3048/99, então vigente, regulamentou a Lei nº 8.213/91, e contemplou o benefício em seus artigos 51 a 55.
Inicialmente, cabe lembrar que a Lei nº 8.213/91 determina que, para se auferir aposentadoria por idade pelo Regime Geral da Previdência Social, necessário é que o segurado preencha dois requisitos fundamentais: a idade mínima e a carência.
3.3.1. Idade mínima
Preconiza o artigo 48 da Lei nº 8.213/91 que “a aposentadoria por idade será devida ao segurado que, cumprida a carência exigida nesta Lei, completar 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta), se mulher”.
O § 1º do mesmo artigo supra define que os limites fixados “são reduzidos para sessenta e cinquenta e cinco anos no caso de trabalhadores rurais, respectivamente homens e mulheres”.
Considera-se período de carência o tempo correspondente ao número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício requerido.
Nos termos do § 2º do artigo 48 da Lei nº 8.213/91, o trabalhador rural deve comprovar o efetivo exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, por tempo igual ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício pretendido. Portanto, não há de se falar, propriamente, de carência para o segurado especial, mas tempo de atividade.
A Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, de 6 de agosto de 2010, regulamentando o dispositivo legal, deu relevância ao direito adquirido, exigindo que
“o segurado especial deverá comprovar o efetivo exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, ou, conforme o caso, ao mês em que cumpriu o requisito etário, por tempo igual ao número de meses de contribuição correspondente à carência exigida.” (grifou-se)
Para a aposentadoria por idade, o momento para a fixação da carência deve ser levado em conta a data em que implementado o requisito etário, e não a do requerimento do benefício. Isto se deve ao fato de se fazer confusão entre o surgimento do direito e o momento de seu exercício.
Se houver perda da qualidade do segurado especial, os períodos de atividade rural anteriores a essa data somente serão computados para efeito de carência rural após o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 do número de meses de atividade rural idêntico aos meses de contribuição correspondente à carência do benefício pretendido.
Quanto à necessidade de se manter a qualidade de segurado durante o requerimento administrativo ou do implemento do requisito etário, deve-se atentar que, ao tratar da aposentadoria por idade, a Lei nº 8.213/91, em seu artigo 48, determina que a aposentadoria por idade será devida ao segurado. Não põe dúvidas quanto à exigência.
Sendo mais explícita, a Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, de 6 de agosto de 2010, em seu art. 215, prescreve que:
“Para fins de aposentadoria por idade prevista no inciso I do art. 39 e art. 143 da Lei nº 8.213, de 1991 dos segurados empregados, contribuintes individuais e especiais, referidos na alínea “a” do inciso I, na alínea “g” do inciso V e no inciso VII do art. 11 do mesmo diploma legal, não será considerada a perda da qualidade de segurado os intervalos entre as atividades rurícolas, devendo, entretanto, estar o segurado exercendo a atividade rural ou em período de graça na DER ou na data em que implementou todas as condições exigidas para o benefício”. (grifou-se)
Perceba-se que o benefício poderá ser devido ao segurado especial, ainda que a atividade exercida na data do requerimento seja de natureza urbana, desde que o segurado tenha preenchido todos os requisitos para a concessão do benefício rural previsto até a expiração do prazo para manutenção da qualidade, na atividade rural, previsto no art. 15 do mesmo diploma legal e não tenha adquirido a carência necessária na atividade urbana.
O importante é que se observe o requisito legal, de modo que deverá haver exercício da atividade rural no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício.
Assim, do exposto no art. 215 da Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, de 6 de agosto de 2010, conclui-se que o INSS reconhece os períodos de atividade rural descontínua, ou seja, interrompidos por atividade urbana ou não.
Aqui, não se trata de usar provas de anos intercalados, mas de efetivamente interromper a atividade. E, na concepção de alguns doutrinadores como, Jane Lucia Wilhelm Berwanger, entendimento inclusive do INSS, não há limite de período. Teríamos, por exemplo, uma pessoa que exerceu atividade rural dos 12 aos 27 anos, se afastou e somente retornou um ano antes de completar a idade para a aposentadoria. Não há óbice para que este benefício seja concedido, se o segurado apresentar provas (pelo menos uma de cada um dos dois períodos – o antigo e o recente) e for confirmada a atividade rural, após entrevista e oitiva de testemunhas. (BERWANGER, 2009, p. 125).
Não há como concordar com este posicionamento, que considera períodos antigos de atividade rural e somente se exige que a pessoa tenha a qualidade de segurado no ato do requerimento; qualidade esta que se pode adquirir com um só dia de trabalho rural.
Tais estudiosos partem da premissa de que se o segurado urbano pode computar as contribuições para aposentadoria por idade ou por tempo de contribuição, mesmo tendo interrompido várias vezes, com ou sem perda da qualidade de segurado, o mesmo deveria ser aplicado ao trabalhador rural (BERWANGER, 2009, p. 125).
Não é esta a opinião prevalente, sobretudo junto ao Poder Judiciário. Neste ponto, como a prova da atividade rural vem exigida por norma especial em relação à previsão contida no artigo 3º, § 1º, da Lei nº 10.666/2003, não há como preconizar a irrelevância da perda da qualidade de segurado no pedido de concessão de aposentadoria por idade do segurado especial. O artigo 3º, §1º, da Lei 10.666/2003 é aplicável tão-somente à aposentadoria urbana por idade.
É o que decidiu a Turma Nacional de Uniformização:
“PREVIDENCIÁRIO. RURÍCOLA. IMPLEMENTO DA IDADE POSTERIOR À SAÍDA DO CAMPO. APOSENTADORIA. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE RURAL NO PERÍODO
IMEDIATAMENTE ANTERIOR AO REQUERIMENTO. REQUISITO. NÃO CUMPRIMENTO.
ARTIGO 3º, § 1º, DA LEI Nº 10.666, DE 2003. INAPLICABILIDADE.
 1. Pedido de Uniformização desafiado em face de acórdão da Turma Regional de Uniformização da 4ª Região, a qual negou provimento a incidente que buscava a concessão de aposentadoria por idade a trabalhadora rural que havia deixado o campo três anos antes do implemento do requisito idade, tendo, ulteriormente, laborado com vínculo urbano. Negado também o pedido alternativo de aposentadoria por tempo de contribuição. [...]
5. O artigo 3º, § 1º, da Lei nº 10.666, de 2003 (“Na hipótese de aposentadoria por idade, a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desse benefício, desde que o segurado conte com, no mínimo, o tempo de contribuição correspondente ao exigido para efeito de carência na data do requerimento do benefício”), como se infere de seu próprio teor – há expressa referência ao “tempo de contribuição” – está a tratar das aposentadorias por idade urbanas, eis que, nas rurais, inexistem contribuições por parte do segurado especial.
6. Pedido de uniformização conhecido em parte e, nesta parte, improvido.” (TNU, PEDILEF nº 2005.70.95.00.1604-4 15, rel. Juíza Federal JOANA CAROLINA LINS PEREIRA, DJ de 29.05.2009). (grifou-se)
Por fim, há de ser registrada a necessidade de se comprovar a qualidade de segurado no momento da postulação do benefício, não aplicando ao segurado especial a regra do art. 3º, § 1º, da Lei 10.666/2003, porquanto o exercício de atividade rural a ser comprovado deve abranger, necessariamente, o período imediatamente anterior ao requerimento do benefício. A carência, na hipótese de perda da qualidade de segurado, somente será cumprida após o segurado especial contar, a partir da nova filiação à Previdência Social Rural, com, no mínimo, 1/3 do número de meses de atividade rural idêntico aos meses de contribuição correspondente à carência do benefício pretendido.
Como visto, o trabalhador poderá aposentar-se por idade quando satisfizer os requisitos da idade mínima e da carência, necessitando, para os segurados especiais, que ostentem esta condição quando do requerimento.
Ocorre que, na linha da introdução deste trabalho, considerando as várias intercorrências do mercado de trabalho no mundo atual, associado ao fato de que as atividades rurais nem sempre podem ser contínuas, não é raro que muitos trabalhadores tenham laborado parte de sua vida na qualidade de segurado especial e outra parte em umas das demais categorias de segurados obrigatórios. Assim, pode acontecer de o trabalhador não lograr tempo suficiente para aposentar-se como segurado especial tampouco tempo suficiente para aposentar-se sob outra categoria de segurado. A pessoa, então, sente-se em um dilema, pois trabalhou por longos anos de sua vida, mas de nada pareceria ter servido tamanho esforço para efeitos de previdência.
Para resolver esta aparente discrepância, a Lei 11.718/2008 conferiu nova redação ao art. 48 da Lei 8.213/91, sobretudo quanto ao acréscimo do § 3º no mesmo. Vejamos:
“Art. 48. A aposentadoria por idade será devida ao segurado que, cumprida a carência exigida nesta Lei, completar 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta), se mulher. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)
§ 1º Os limites fixados no caput são reduzidos para sessenta e cinqüenta e cinco anos no caso de trabalhadores rurais, respectivamente homens e mulheres, referidos na alínea a do inciso I, na alínea g do inciso V e nos incisos VI e VII do art. 11. (Redação dada pela Lei nº 9.876, de 1999)
§ 2º Para os efeitos do disposto no § 1º deste artigo, o trabalhador rural deve comprovar o efetivo exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, por tempo igual ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício pretendido, computado o período a que se referem os incisos III a VIII do § 9º do art. 11 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 11,718, de 2008)
§ 3º Os trabalhadores rurais de que trata o § 1º deste artigo que não atendam ao disposto no § 2º deste artigo, mas que satisfaçam essa condição, se forem considerados períodos de contribuição sob outras categorias do segurado, farão jus ao benefício ao completarem 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta) anos, se mulher. (Incluído pela Lei nº 11,718, de 2008) (Grifos nossos).
§ 4º Para efeito do § 3º deste artigo, o cálculo da renda mensal do benefício será apurado de acordo com o disposto no inciso II do caput do art. 29 desta Lei, considerando-se como salário-de-contribuição mensal do período como segurado especial o limite mínimo de salário-de-contribuição da Previdência Social”. (Incluído pela Lei nº 11,718, de 2008)
Assim, os trabalhadores rurais que não comprovarem o efetivo exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento da aposentadoria por idade, por tempo igual ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício para as demais categorias de segurado, poderão utilizar períodos de contribuição sob outras categorias de segurado. Obterá, então, uma aposentadoria, que não se poderá dizer que é exclusivamente urbana nem rural. A aposentadoria é híbrida, mista de dois sistemas, um contributivo e outro não. Neste caso, não haverá a redução da idade para este fim, devendo aposentar-se com a mesma idade exigida para as demais categorias de segurado.
Quanto ao tempo a ser considerado sob cada categoria, percebe-se que a lei nada estipula, de modo que basta que a soma dos períodos, sejam os períodos de que categoria for, atinjam a carência mínima de 180 meses (regime permanente), não importando qual a qualidade de segurado que o trabalhador ostente quando do requerimento.
Logo, ao contrário do que a primeira leitura do §3º pode levar a entender, a benesse não pode proteger apenas aquele que veio a ser trabalhador rural quando do avançar da idade, mas deve proteger aquele que um dia foi, mas que por razões variadas teve de migrar para a zona urbana e na qualidade de segurado urbano veio a requerer o benefício.
É que, apesar de a lei referir-se claramente a “trabalhadores rurais”, o dispositivo deve ser interpretado à luz do princípio da igualdade, que vem na constituição sob o manto do princípio específico da “uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais” (art. 194, inciso II, da CF/88).
De acordo com a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às duas populações, o legislador assegura a isonomia dos direitos, tornando a concessão em igualdade de condições, quer seja para um trabalhador do ambiente rural, ou urbano.
A uniformidade determina que a seleção das contingências ou eventos a serem protegidos pela seguridade social necessita ser feita de maneira homogênea, devendo os serviços e benefícios que virão a acobertá-los ser prestados às duas populações. Ao observarmos os riscos listados pela Constituição da República Federativa do Brasil que possuem cobertura pelo sistema de seguridade, é possível perceber que há a homogeneidade, bem como, ao observarmos os sujeitos que terão direito, concluímos que todas as espécies de trabalhadores estão incluídas.
A equivalência é outro aspecto a ser respeitado pelo princípio em consideração, o qual busca garantir que os benefícios e serviços devem ser prestados de maneira equivalente, em quantidade e qualidade, às populações urbanas e rurais.
Foi para corrigir este lapso normativo que o Decreto nº 6.722/2008, ao regulamentar a inovação legislativa, incluiu o §4º ao art. 51 do Decreto nº 3.048/1999, in verbis:
“Art. 51. A aposentadoria por idade, uma vez cumprida a carência exigida, será devida ao segurado que completar sessenta e cinco anos de idade, se homem, ou sessenta, se mulher, reduzidos esses limites para sessenta e cinqüenta e cinco anos de idade para os trabalhadores rurais, respectivamente homens e mulheres, referidos na alínea "a" do inciso I, na alínea "j" do inciso V e nos incisos VI e VII do caput do art. 9º, bem como para os segurados garimpeiros que trabalhem, comprovadamente, em regime de economia familiar, conforme definido no § 5º do art. 9º. (Redação dada pelo Decreto nº 3.265, de 1999) [...]
§ 2º Os trabalhadores rurais de que trata o caput que não atendam ao disposto no § 1o, mas que satisfaçam essa condição, se forem considerados períodos de contribuição sob outras categorias do segurado, farão jus ao benefício ao completarem sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos, se mulher. (Incluído pelo Decreto nº 6.722, de 2008).
§ 3º Para efeito do § 2º, o cálculo da renda mensal do benefício será apurado na forma do disposto no inciso II do caput do art. 32, considerando-se como salário-de-contribuição mensal do período como segurado especial o limite mínimo do salário-de-contribuição da previdência social. (Incluído pelo Decreto nº 6.722, de 2008).
§ 4º Aplica-se o disposto nos §§ 2º e 3º ainda que na oportunidade do requerimento da aposentadoria o segurado não se enquadre como trabalhador rural. (Incluído pelo Decreto nº 6.722, de 2008)”. (Grifos nossos).
Porém, há quem entenda que a aposentadoria mista dirige-se apenas ao trabalhador rural, não alcançando o trabalhador urbano, mesmo sendo notório que o fato de laborar em zona urbana não foi uma ocorrência de livre escolha, mas muitas vezes motivada pela impossibilidade de continuar no sofrimento campesino que muitas regiões brasileiras oferecem.
Pois bem, a Turma Regional de Uniformização entendeu que o benefício de que trata o art. 48, §3º, da Lei 8.213/91 é devido apenas aos trabalhadores rurais que implementam o requisito etário enquanto vinculados ao campo, não alcançando aquele que, ainda por muitos longos anos, laborou no campo, mas que, ao avançar da idade, teve que mudar-se para a cidade em busca de trabalho. Vejamos:
“EMENTA: INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO REGIONAL. APOSENTADORIA POR IDADE URBANA. CÔMPUTO DE TEMPO DE ATIVIDADE RURAL COMO CARÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 48, §3º, DA LEI 8.213/1991, COM ALTERAÇÕES DA LEI 11.718/20081. 
1. O benefício de que trata o art. 48, §3º, da Lei 8.213/91 é devido aos trabalhadores rurais que implementam o requisito etário enquanto vinculados ao campo. Não se enquadra às novas normas de aposentadoria por idade aquele que, por determinado tempo em remoto passado, desempenhou atividade de natureza rural e se desvinculou definitivamente do trabalho campesino. 
2. A Lei 11.718/2008 não revogou o disposto no artigo 55, §2º, da Lei 8.213/1991, de maneira que continua sendo vedado o cômputo de tempo rural para fins de carência sem que tenha havido contribuições previdenciárias. 
3. Precedentes da TRU 4ª Região. 
4. Incidente conhecido e provido.” (IUJEF 0000341-03.2010.404.7251, Turma Regional de Uniformização da 4ª Região, Relator Osório Ávila Neto, D.E. 28/02/2012).(Grifos nossos).
De qualquer maneira, o avanço foi grande em termos legislativos, ainda mais quando, em termos legais, o segurado não está obrigado a perceber o benefício no valor mínimo. Para efeito da concessão da aposentadoria mista, o cálculo da renda mensal do benefício será apurado considerando-se os salários-de-contribuições mensais referentes aos períodos de trabalho na condição de urbana ou rural contributiva, sendo que, para o período como segurado especial sem contribuição facultativa, o valor a integrar o período básico de calculo - PBC será o salário-mínimo nacional.
O suporte público ao segurado especial por muitas vezes resta incompreendido, de modo que se entende mais como uma benesse do Estado que um direito subjetivo, daí o surgimento de posições cada vez mais restritivas, com o fito de negar proteção a esta espécie de trabalhador.
Em verdade, a proteção do trabalhador rural tem relevante significado histórico, econômico e social. Garantir proteção ao campesino acaba por estimular que as pessoas encontrem vantagens em fixar o homem no campo, de modo a conter o êxodo rural que assolou o Brasil por muitos anos, causando inchaço populacional nos grandes centros urbanos, com reflexos significativos nas precárias condições de vida, incremento da violência e demanda por serviços médicos.
Assim, a conquista dos benefícios mínimos para os trabalhadores rurais, longe de ser um gasto inútil e um favor para os ditos segurados, acaba por trazer maiores recompensas socioeconômicas para a nação, tudo isto partindo do pressuposto de um valor positivo do trabalho rural.
Porém, o fato de se reconhecer valor ao trabalho no campo, bem como entender a opção da constituinte, não induz a uma autorização irrestrita a se conceder benefícios previdenciários sem um mínimo de cautela, tampouco em aplicar a lei ao arrepio do princípio da igualdade. Deve o julgador posicionar-se no sentido de não transformar os benefícios rurais em uma afronta ao trabalho urbano. É por isto que, neste artigo, defendemos que a aposentadoria mista (art. 48, §3º, da Lei 8.213/91) também deve abranger aquele trabalhador que não mais se enquadra como rurícola no momento do requerimento, mas que já ostentou esta condição por período de sua vida.

Previdenciário

 

A proteção dos dependentes no auxílio-reclusão frente às alterações dadas pela Emenda Constitucional n.º 20, de 15 de dezembro de 1998

Wesley Adileu Gomes e Silva
 
 

Resumo: O presente trabalho acadêmico abordará a evolução constitucional e legislativa do auxílio-reclusão no Brasil, explanará os requisitos de concessão e discutirá a constitucionalidade de um deles – instituído pela Emenda Constitucional nº. 20/1998 –, o qual exige, para a concessão do benefício, que o segurado seja de baixa renda, abstendo-se tal emenda quanto à situação por que passará os dependentes dos demais segurados. Os Tribunais Regionais Federais já não mais decidem pela inconstitucionalidade da reforma constitucional, preferindo seguir o atual (mas não vinculante) entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Auxílio-reclusão. Requisitos. Segurados de baixa renda. Dependentes excluídos.
Sumário: 1. Introdução 2. Histórico no Brasil e Direito Comparado 3.Requisitos para obtenção do benefício a. Qualidade de segurado do recluso b. Dependência econômica dos requerentes em relação ao recluso c. A renda do recluso deve ser inferior ao valor estabelecido no art. 13 da EC n. 20 de 15.12.98 com as atualizações pertinentes. 4.Controvérsia sobre a constitucionalidade da exigência da baixa renda do segurado como requisito de concessão. 5.Conclusão. Referências
1. Introdução
Levantamento do Ministério da Justiça[1] aponta que, no Brasil, havia em dezembro/2012 490.822 presos em regimes de restrição significativa de liberdade (condenados a regime fechado e semiaberto, bem como presos provisórios em carceragens da Polícia ou em penitenciárias). Um dado assustador quando se sabe que no mesmo mês do ano de 2011 havia 451.914 presos nestas condições, o que revela um aumento de 38.908 presos em um ano (aproximadamente 9%), isto excluindo aquelas pessoas condenadas a regimes abertos ou a penas pecuniárias.
No mesmo período, o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) concedeu 34.439 auxílios-reclusão à população urbana e 3.460 à população rural, totalizando 37.899 benefícios desta espécie concedidos, mas que, longe de parecer significativo para a Previdência, representou apenas 0,10% de tudo o que a Previdência gastou em benefícios no ano de 2012[2].
Auxílio-reclusão: um benefício que se concede à família do segurado levado à prisão em regime fechado, semiaberto ou regime equivalente no aspecto da restrição da liberdade. Um benefício até certo ponto polêmico e, dentre os benefícios previstos na Legislação Previdenciária, o que mais desperta dúvidas acerca não só de seus critérios para concessão, mas quanto a sua própria existência.
Assim, este trabalho acadêmico se propõe a abordar tão polêmico benefício, debatendo as correntes que se formaram neste processo crítico, bem como se propõe, com o discurso, desmitificar a ideia de que tal benefício se constitui em uma benesse gratuita do Estado a fomentar a delinquência.
Evidenciaremos um olhar que vai além do sentimento de vingança contra o infrator, um olhar que procura ver as necessidades dos familiares que foram deixados desguarnecidos em virtude do encarceramento do segurado. Estes, sim, os verdadeiros beneficiários da norma.
Porém, todo este estudo seguirá traçando primeiramente a evolução histórica do instituto, para depois explicitar seus requisitos concessivos e, somente com o fechamento deste ciclo propedêutico, criticar os mesmos, refletindo sempre a respeito da situação dos dependentes, cuja proteção restou claramente prejudicada após a edição da Emenda Constitucional n.º 20, de 15 de dezembro de 1998 (EC 20/98).
2. Histórico no Brasil e Direito Comparado
O Brasil é o único País em que existe o benefício nos moldes do auxílio-reclusão, cuja previsão remonta ao extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM) e, após, pelo também extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB).[3] Assim, vê-se que no direito comparado não se tem a prisão do segurado como risco social a ser coberto pela previdência social, não sendo nenhuma surpresa “a perplexidade dos operadores do direito de outros países ao tomarem conhecimento da existência de benefício previdenciário decorrente da prisão do segurado no Brasil”[4].
Porém, não se pode entender como demérito o fato de que apenas o Brasil conta com tal benefício, considerando que em outros países há benefícios também não alcançados pelas legislações estrangeiras, como é o caso da “previdência social argentina, que garante pensão para as mães com mais de 7 filhos”[5].
Enfim, ainda que se tenha a origem do benefício nos Institutos acima narrados, foi mesmo com a Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960, denominada Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS que o direito ganhou statusuniversal. Vejamos o que dispunha o texto normativo:
“CAPÍTULO XI
DO AUXÍLIO-RECLUSÃO
Art. 43. Aos beneficiários do segurado, detento ou recluso, que não perceba qualquer espécie de remuneração da emprêsa, e que houver realizado no mínimo 12 (doze) contribuições mensais, a previdência social prestará auxílio-reclusão na forma dos arts. 37, 38, 39 e 40, desta lei.
§ 1º O processo de auxílio-reclusão será instruído com certidão do despacho da prisão preventiva ou sentença condenatória.
§ 2º O pagamento da pensão será mantido enquanto durar a reclusão ou detenção do segurado o que será comprovado por meio de atestados trimestrais firmados por autoridade competente.”
Digno de nota é que, à semelhança dos requisitos da pensão por morte na época, para a concessão do auxílio-reclusão se exigia do segurado que ele tivesse realizado no mínimo 12 (doze) contribuições mensais à Previdência Social antecedendo o fato gerador do benefício. Como veremos a seguir, este número mínimo de contribuições necessárias à postulação do benefício, denominada “carência”, não mais faz parte dos requisitos atuais de concessão.
Pois bem. Se foi verdade que o auxílio-reclusão teve previsão normativa já faz mais de meio século, no plano constitucional sua previsão é recente, pois foi com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que se deu a primeira normatização do benefício com semelhante respaldo. Nenhuma outra Constituição que a antecedeu fez tal previsão.
É certo que a Constituição de 1988, ao dispor do risco social “reclusão”, não fez nenhum detalhamento acerca dos requisitos de concessão, mas já percebia-se que, topologicamente, não era o mesmo atrelado à renda do segurado, como ocorreu com o salário-família. Vejamos a redação original do diploma constituinte:
“Art. 201. Os planos de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a:
I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte, incluídos os resultantes de acidentes do trabalho, velhice e reclusão;
II - ajuda à manutenção dos dependentes dos segurados de baixa renda;
III - proteção à maternidade, especialmente à gestante;
IV - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
V - pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, obedecido o disposto no § 5º e no art. 202.”
Para conter o que se propagou como “o rombo da Previdência” – um problema financeiro e atuarial que se projetou tão sombriamente – procedeu-se à sua reforma que, de tão lesiva ao trabalhador, foi apelidada de “contrarreforma”. A alteração constitucional ficou a cargo da Emenda Constitucional n.º 20, de 15 de dezembro de 1998 (EC 20/98), um inconteste retrocesso em termos de proteção social. Vejamos:
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:     (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)       (Vide Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
II - proteção à maternidade, especialmente à gestante; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998”) (grifos nossos).
Assim, percebe-se claramente que o inciso IV do art. 201 da CF restringiu as possibilidades de concessão do auxílio-reclusão, que antes era irrestrita quanto à renda do segurado, para alcançar, agora, apenas os dependentes dos segurados de baixa renda.
E o que vem a ser “segurado de baixa renda”? A resposta foi ofertada pela própria Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998 que, em disposição de conteúdo transitório, em seu art. 13, trouxe a regra de que:
“Até que a lei discipline o acesso ao salário-família e auxílio-reclusão para os servidores, segurados e seus dependentes, esses benefícios serão concedidos apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), que, até a publicação da lei, serão corrigidos pelos mesmos índices aplicados aos benefícios do regime geral de previdência social.”
Note-se que o valor disposto na Emenda Constitucional nº 20 equivalia, à época, a aproximadamente 2,8 salários mínimos, haja vista o salário mínimo vigente em dezembro de 1998 (quando da publicação da referida Emenda) corresponder a R$130,00.
No plano infraconstitucional, coube à Lei nº 8.213/90 e ao Decreto nº 3.048/99 a regulamentação da matéria, cujos textos servem de referência para a entidade concessora, o Instituto Nacional do Seguro Social, cumprir a sua função distributiva.
3. Requisitos para obtenção do benefício
Conforme vimos, a concessão de auxílio-reclusão, atualmente, depende do preenchimento de três requisitos: qualidade de segurado do recluso; dependência econômica dos requerentes em relação a ele; e ser a renda do recluso inferior ao valor estabelecido no art. 13 da EC n.º 20, de 15.12.98, com as atualizações pertinentes.
a. Qualidade de segurado do recluso
À semelhança da pensão por morte, não há necessidade de cumprimento de carência (número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, vide art. 24 da Lei nº 8.213/91), bastando a comprovação da qualidade de segurado. Isto não quer dizer que ser segurado corresponde a manter-se empregado. Mesmo o desempregado pode ostentar a condição de segurado, desde que se filie facultativamente ao regime e realize as contribuições devidas ou esteja em período de graça, que, de acordo com o que preceitua o art. 15 da Lei nº 8.213/91, é o tempo máximo que o segurado poderá deixar de contribuir sem romper o vínculo com o sistema.
Porém, não é demais lembrar que a condição de segurado deve vir acompanhada com a prova da situação de recluso, tanto é que a Lei nº 8.213/91, no parágrafo único do art. 80, exige que “o requerimento do auxílio-reclusão deverá ser instruído com certidão do efetivo recolhimento à prisão, sendo obrigatória, para a manutenção do benefício, a apresentação de declaração de permanência na condição de presidiário”.
Assim, o benefício somente é devido durante o período em que o segurado estiver efetivamente recolhido à prisão, sob regime fechado ou semiaberto (art. 116, § 5º, do Decreto nº 3.048/99), em decorrência de decisão judicial de qualquer natureza que determine seu recolhimento à prisão, mesmo em caso de prisão civil por dívida de natureza alimentícia, ou prisão processual (temporária, preventiva, v.g.).
Logo, não é devido o benefício no caso de cumprimento de pena em regime aberto ou quando o apenado cumpre a sanção em liberdade. Entende-se que, neste caso, o segurado não estaria impedido de trabalhar e sustentar, com recursos próprios, sua família[6].
b. Dependência econômica dos requerentes em relação ao recluso
O auxílio-reclusão possui natureza substitutiva da renda do trabalhador, sendo devido, nas mesmas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado recolhido à prisão, que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxílio-doença, de aposentadoria ou de abono de permanência em serviço (art. 80 da Lei nº 8.213/91).
São, pois, os dependentes elegíveis a beneficiários do auxílio, divididos em três classes, de acordo com os incisos do art. 16 da Lei 8.213/91. Existindo alguém pertencente a uma classe, os dependentes das demais classes serão automaticamente excluídos da proteção previdenciária. São elas:
“I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente; (Redação dada pela Lei nº 12.470, de 2011)
II - os pais;
III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente; (Redação dada pela Lei nº 12.470, de 2011) [...]
§ 2º .O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997) [...]
§ 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais deve ser comprovada.”
Portanto, as regras da pensão por morte são aplicáveis, no que couber, ao auxílio-reclusão, ou seja, aplicam-se as disposições da pensão por morte enquanto não houver disposição específica em contrário.
Assim, as cotas individuais do auxílio-reclusão extinguem-se pela ocorrência da perda da qualidade de dependente, caso em que sua cota reverterá em benefício dos demais dependentes, se houver. Neste ponto não há qualquer diferença com a pensão por morte e, inclusive, vem a cessar: quando da morte do segurado preso; quando o dependente antes menor de idade completar vinte e um anos, salvo se for inválido, ou pela emancipação, ainda que inválido, exceto, neste caso, se a emancipação for decorrente de colação de grau científico em curso de ensino superior; ou, para o beneficiário inválido, pela cessação da invalidez, verificada em exame médico-pericial a cargo da previdência social. Ressalte-se, ainda, que perde o filho-beneficiário perderá a condição de dependente se vier a ser adotado por outra família (logo, não perde a condição quando o cônjuge ou companheiro adota o filho do outro). 
Com a extinção da cota do último pensionista, a pensão por morte será encerrada. 
Uma das particularidades, então, repousa no que se refere ao caso de fuga, hipótese que suspende a percepção do benefício pelo dependente até que haja recaptura do segurado, sendo a benesse restabelecida a contar da recaptura, e desde que esteja ainda mantida a qualidade de segurado (§ 2º da IN nº 45/2010).
Falecendo o segurado preso, o auxílio-reclusão pago aos seus dependentes será automaticamente convertido em pensão por morte (art. 118 do Decreto nº 3.048/99), sem que os dependentes, portanto, tenham que o requerer.
c. A renda do recluso deve ser inferior ao valor estabelecido no art. 13 da EC n. 20, de 15.12.98 com as atualizações pertinentes.
O derradeiro requisito para a concessão do benefício foi acrescentado pela EC 20/98, que restringiu a proteção apenas aos dependentes de segurados de baixa renda[7]. Com esta retração, objetivou-se reduzir o número de beneficiários do auxílio-reclusão, como se o pagamento de tal benefício fosse o responsável pelo déficit da previdência social no Brasil. Conforme vimos, o auxilio-reclusão, em 2012, representou apenas 0,10% de tudo que a Previdência gastou em benefícios no ano.
De toda forma, cabe aqui tecer algumas considerações sobre o conceito de baixa renda, deixando a questão da constitucionalidade para estudo em item específico.
Pois bem. Para efeito da aferição da baixa renda, esta será considerada o último salário-de-contribuição[8], tomado em seu valor mensal, na data da cessação das contribuições ou do afastamento do trabalho em decorrência da prisão (art. 334, §2º, inc. II, Instrução Normativa INSS/PRES nº 45/2010).
Tal critério parece-nos incorreto, ao menos se adotado rigorosamente. Não seria rara a situação em que a última remuneração do recluso se mostrasse superavaliada, como é o caso da percepção das verbas rescisórias, que não corresponderia, de fato, às parcelas salariais do segurado. Assim, poderia o critério ser flexibilizado diante da peculiaridade do caso concreto.
Veja-se também o segurado que, ao longo do ano, recebia rendimentos variáveis, como é o caso de empregados comissionistas. Neste caso, o mais correto seria apurar a renda segundo média aritmética dos últimos 12 salários, assim como se pratica no direito do trabalho para fins de se aferir o quanto para pagamento do 13º salário.
Na contramão, todavia, prescreve o § 6º, art. 334, da IN 45/2010[9] que, o segurado que recebe por comissão, sem remuneração fixa, terá considerado como salário-de-contribuição mensal o valor auferido no mês do efetivo recolhimento à prisão, da mesma maneira que os demais, como se tais segurados não merecessem tratamento diferenciado.
Mas controvérsia mesmo se pode deparar quando o segurado recluso encontrar-se desempregado por ocasião de seu encarceramento, e em fruição de período de graça. Neste caso, vê-se que ele não auferia qualquer rendimento, o que tem levado alguns órgãos do judiciário a considerar, para fins de apuração da baixa renda, que o segurado tinha como último salário-de-contribuição o valor zero. Ou seja, o recluso que estivesse desempregado às vésperas do encarceramento sempre seria considerado de baixa renda. É o que vem entendendo uma das turmas do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Vejamos:
“ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AUXÍLIO-RECLUSÃO. REGULARIDADE DA REPRESENTAÇÃO. SEGURADO DESEMPREGADO AO TEMPO DA PRISÃO. REFERÊNCIA SALARIAL INEXISTENTE. 1. Não há necessidade de juntada da certidão de nascimento dos filhos substituídos, uma vez que constam da relação de dependentes junto ao INSS, fl.12. 2. O motivo determinante do indeferimento do pedido de auxilio-reclusão foi o valor do salário de contribuição do segurado, de forma que não pode o impetrado invocar outros fundamentos para afastar o direito almejado, uma vez que a autoridade fica vinculada à motivação externada. 3. Nesse desiderato, verifica-se que ao ser preso, em 19/07/00, o segurado estava desempregado, estando em período de graça prorrogado, de forma que não vertia contribuições para o sistema e não possuía qualquer renda de molde a impedir o pagamento do auxílio-reclusão a seus dependentes.” (TRF1, AC - APELAÇÃO CIVEL – 200138000233763, Relator(a): JUÍZA FEDERAL ROSIMAYRE GONCALVES DE CARVALHO, Data da Decisão: 19/09/2012 2ª TURMA SUPLEMENTAR, Data da Publicação: 20/11/2012)
Felizmente, mas com a ressalva de que o último salário-de-contribuição nem sempre reflete o padrão remuneratório anterior do segurado, vem a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais e, na linha do entendimento administrativo, decidindo que, em caso de desemprego do segurado, “o valor a ser considerado – para enquadramento do segurado no conceito de baixa renda para fins de percepção de auxílio-reclusão – deve corresponder ao último salário-de-contribuição efetivamente apurado antes do encarceramento”[10].
Para esse órgão judiciário, considerar (na ausência de renda decorrente de desemprego) salário-de-contribuição equivalente a zero seria o mesmo que reconhecer um salário-de-contribuição ficto, o que não vem sendo reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (RE 583.834/SC, Relator Min. Ayres Britto, julgado em 21.9.2011, Informativo 641). 
Por fim, cabe deixar uma crítica acerca de como o Governo vem atualizando os valores do teto de salário-de-contribuição para a concessão do auxílio-reclusão, aproximando-o cada vez mais do salário-mínimo.
Em 1998, quando aprovada a EC 20/98, o valor do salário de contribuição requerido era de R$ 360,00, hoje, para ter direito ao benefício, o último salário-de-contribuição do segurado, tomado em seu valor mensal, deverá ser igual ou inferior ao valor de R$ 1.025,81 (um mil e vinte e cinco reais e oitenta e um centavos), de acordo com a Portaria Interministerial MPS/MF nº 19, de 10 de janeiro de 2014. Tem-se um reajuste de 284,94 %.[11]
Se tomássemos os valores do salário-mínimo nacional como base de comparação, temos em 1998 o valor do salário-mínimo de R$ 130,00 que, até o final do ano de 2014, era de R$ 724,00. Um reajuste de 556,92%.
“A partir desta análise pode-se comprovar que a base de reajuste do benefício previdenciário é significativamente menor do que a do salário mínimo. Por um lado, isto faz com que a cobertura do auxílio-reclusão seja cada vez mais restrita e focalizada, afastando uma parcela significativa de dependentes que poderia ser alcançada pelo benefício.” [12]
E, caso esta base de reajuste seja mantida, em alguns anos o valor do salário de contribuição será ultrapassado pelo salário mínimo, ou seja, chegará o dia em que o auxílio-reclusão será, na prática, extinto, em completo desrespeito à concepção inicial do poder constituinte originário.
4. Controvérsia sobre a constitucionalidade da exigência da baixa renda do segurado como requisito de concessão.
Juntamente com a pensão por morte, o auxílio-reclusão foi concebido para a proteção dos dependentes do segurado, um dos mecanismos estatais de proteção à família[13]. Porém, vimos que o Estado brasileiro achou por bem relativizar o alcance de sua proteção e esta afirmativa é facilmente verificada quando da exigência de que somente merece proteção a família do segurado de baixa renda.
Argumenta-se que o Poder Constituinte Reformador incorreu em inconstitucionalidade, tendo em vista que, ao invés de considerar a renda do segurado recolhido à prisão, deveria ter considerado a renda bruta da família deste ou que, simplesmente, não se aferisse renda nenhuma, bastando o mero encarceramento do segurado como fato ensejador da concessão. Era este o padrão anterior à emenda constitucional, tendo em vista que o constituinte originário fazia referência a segurado de baixa renda apenas para a concessão do salário-família.
Ademais, parece-nos que não só o Estado brasileiro desguarneceu a família como também se afastou de certo modo do objetivo fundamental de erradicação da pobreza. Muitas famílias que ficarão de fora do alcance da proteção previdenciária amargarão os dissabores da miséria, caso não sejam amparadas pelos programas assistenciais.
Aliás, o auxílio-reclusão não é assistencial e sim um dever do Estado para com o trabalhador que contribuiu. Sendo a Previdência que já existia nos moldes ampliados, fica difícil entender que não havia fonte de custeio para tal benefício. Muito pior se tem permitido o Estado, com concessões de pensões por morte em valores integrais e eternas a viúvos e viúvas jovens, com plena capacidade laboral, bem como indeterminadas desonerações que se têm feito nas folhas de pagamento.
Porém, o que mais causa espécie é que a restrição imposta pela EC n.º 20, de 15.12.98 não se preocupou em garantir a isonomia. Qual seria o critério de descrímen utilizado pelo constituinte derivado para excluir as famílias da parcela de segurados que, assim como os de baixa renda, também verteram contribuições para o seguro social? Imaginando que o destinatário da norma seria o dependente, pouco deveria importar a renda do segurado, porquanto não seria ele o beneficiário da prestação previdenciária.
Sabendo, como já narrado, que o auxílio-reclusão em quase nada impacta a previdência (não alcança mais de 0,10% dos gastos efetuados), é de desconfiar que a reforma objetivou extinguir o benefício, implicando desproteção à família, passando a pena do infrator para seus componentes. A pena não poderia passar da pessoa do condenado[14]. O pior dos dissabores o preso já vivenciará: uma pena qualificada com a mais vil crueldade, ao experimentar a desumanidade e descaso que permeiam as penitenciárias brasileiras. A família dele não deveria pagar por erro que não cometeu.
Em arremate do que se entende como fundamento da inconstitucionalidade da restrição imposta ao auxílio-reclusão, aponta-se o princípio da vedação ao retrocesso. Não que os direitos sociais sejam inatingíveis – tendo em vista que nenhum direito fundamental é absoluto –, porém toda restrição a direito fundamental deve estar amparada no postulado da proporcionalidade. A restrição efetuada está longe de ter sido uma medida necessária e adequada para proteger o equilíbrio financeiro e atuarial da previdência.
Neste ponto, o princípio da proibição ao retrocesso social fornece critério objetivo para controlar a adequação e a correção da atividade restritiva dos direitos fundamentais. O legislador, na tarefa restritiva dos direitos fundamentais, deveria levar em conta que o auxílio-reclusão, na forma originária, era direito fundamental já incorporado ao patrimônio jurídico da pessoa.
Agindo da forma que fez, o legislador traiu a promessa da Constituição, sobretudo quando fez pouco caso com os direitos já conquistados. Desse modo, é possível dizer que a reforma veio na contramão da programaticidade constitucional, quando se retirou uma das grandes conquistas da sociedade, ainda que voltadas a uma reduzida minoria.
Do exposto, em que pesem as razões supratranscritas, não foi este o entendimento do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 587365 SC em sede de repercussão geral.
“PREVIDENCIÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUXÍLIO-RECLUSÃO. ART. 201, IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. LIMITAÇÃO DO UNIVERSO DOS CONTEMPLADOS PELO AUXÍLIO-RECLUSÃO. BENEFÍCIO RESTRITO AOS SEGURADOS PRESOS DE BAIXA RENDA. RESTRIÇÃO INTRODUZIDA PELA EC 20/1998. SELETIVIDADE FUNDADA NA RENDA DO SEGURADO PRESO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. I - Segundo decorre do art. 201, IV, da Constituição, a renda do segurado preso é que a deve ser utilizada como parâmetro para a concessão do benefício e não a de seus dependentes. II - Tal compreensão se extrai da redação dada ao referido dispositivo pela EC 20/1998, que restringiu o universo daqueles alcançados pelo auxílio-reclusão, a qual adotou o critério da seletividade para apurar a efetiva necessidade dos beneficiários. III - Diante disso, o art. 116 do Decreto 3.048/1999 não padece do vício da inconstitucionalidade. IV - Recurso extraordinário conhecido e provido”. (STF - RE: 587365 SC , Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 25/03/2009, Tribunal Pleno, Data de Publicação: REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO)
No acórdão proferido no dito Recurso Extraordinário, o relator fez questão de afastar qualquer interpretação literal equivocada. Para ele, o constituinte derivado pretendeu, sim, excluir os dependentes dos segurados de renda mais elevada, porquanto, pretendesse conceder o auxílio aos “dependentes de baixa renda”, usaria o adjetivo “baixa renda” desta maneira, após o substantivo “dependentes”. Porém, o constituinte não agiu desta maneira, preferindo adjetivar como se baixa renda o segurado, sem sombras de dúvidas.
Logo, a Constituição segue dispondo que os dependentes de certa pessoa têm direito à concessão de um benefício previdenciário quando ela segue encarcerada, desde que o preso seja segurado e possua baixa renda, nos termos da lei.
Vê-se que o Supremo Tribunal Federal, que normalmente se mostra tão substancialista na proteção dos direitos, preferiu adotar uma hermenêutica clássica, histórica e literal do texto constitucional. Não que tais métodos interpretativos sejam proibidos, mas, diante da complexidade do caso, deveriam ser apenas um ponto de partida para se encontrar a solução para o impasse.
Fez reverência o STF ao que se tem chamado de “liberdade de conformação do legislador”, ao deixar de reconhecer obstáculo à alteração constitucional. Este espaço de liberdade decisória é sempre reconhecido quando se pretende permitir a atualização constitucional diante de uma realidade cambiante. Apenas não ficou claro, contudo, que nova realidade seria esta a autorizar tamanho retrocesso. Simplesmente se almejou reduzir o universo daqueles alcançados pelo auxílio-reclusão, tomando, na hipótese, por base o princípio constitucional da seletividade. Diz-se, com isto, apurar-se a efetiva necessidade dos beneficiários.
Da leitura dos votos proferidos no mencionado Recurso Extraordinário, depreende-se o receio em se ignorar o critério adotado, posto que se entendeu que a renda da família seria critério de seleção impossível de ser objetivamente aferido. É que bastaria que o segurado tivesse filhos menores de 14 anos (impossibilitados juridicamente de trabalhar e, portanto, aferir renda própria) que eles teriam direito à percepção do benefício. Porém, este problema seria facilmente contornado se não se pensasse a renda de cada um dos componentes da família isoladamente, mas abarcando todo o conjunto familiar, do mesmo modo que se vem aferindo a renda per capita para a concessão do benefício assistencial de prestação continuada – BPC/LOAS.
Outro ponto do julgamento é que, sendo o sistema contributivo, apenas com base nas contribuições vertidas é que se deveria aferir e conceder o benefício previdenciário. Se os dependentes dos segurados que possuíam maior renda ficarem desamparados, não mais será problema da Previdência Social, mas da Assistência Social, através de programas de erradicação da pobreza (miséria?), como é o caso do programa bolsa-família.
Todos os Tribunais Regionais Federais, mesmo os que antes eram defensores da tese da inconstitucionalidade[15], têm-se retratado e acompanhado o entendimento do STF, como se não valesse mais a pena discutir a temática.
Porém, vale lembrar que a jurisprudência vem acatando um precedente do STF, mas que, segundo a processualística nacional, não tem força vinculante como seria o caso de o entendimento ter sido enfrentado em sede de controle abstrato de constitucionalidade. Talvez valesse construir novos argumentos ou aprimorar os antigos para, então, solicitar dos tribunais uma nova posição a respeito do tema.
5. Conclusão
Infelizmente, o constituinte derivado, ao impor a alteração, esqueceu-se da finalidade da norma originária. Ora, o auxílio-reclusão destina-se ao dependente e não ao segurado, visa a suprir a falta da renda deixada pelo provedor recluso. O que se tem atualmente, todavia, é um critério falho, que protege a família rica de um preso pobre e abandona a família pobre de um preso rico. Uma seletividade difícil de compreender, em que canaliza o dinheiro público para quem não necessita e deixa de amparar quem dele precisa.
Olvida-se que o risco social coberto é a prisão, mas a finalidade da norma é a proteção da família desamparada por ocasião do encarceramento do segurado mantenedor. Sendo assim, fica fácil perceber que o auxílio-reclusão é prestação pecuniária de caráter substitutivo, destinado a mitigar os danos causados pela falta do provedor.
Do exposto, inclinamos a defender que não deveria importar a situação financeira do segurado quando este era uma pessoa livre e podia trabalhar, mas a situação presente que ele deixou ao ser preso, com cônjuge, filhos e enteados talvez em completa penúria, e neste caso o Estado deve oferecer sua contrapartida em relação às contribuições vertidas pelo segurado (não há benefício sem fonte de custeio, pois).
Por fim, após esta breve exposição sobre o auxílio-reclusão, esperamos ter contribuído para o debate acerca do retrocesso social imposto pela Emenda Constitucional nº 20/98, que reduziu um direito fundamental do trabalhador/segurado, sem nenhum motivo razoável, mas amparado apenas no princípio da seletividade que, de tão vago e impreciso, pouco se pode fazer para impedir arbitrariedades.