OPINIÃO: O silencioso custo da Previdência Social
Previdência Social brasileira registra constantes déficits e envelhecimento da população deve acentuar a urgência por mudanças no sistema
Durante muito tempo, a humanidade buscou alternativas para prolongar o tempo de vida de homens e mulheres de todo o planeta. Como resultado dos avanços da medicina e das melhorias na qualidade de vida, a população mundial está, a cada dia, envelhecendo mais. O chamado “Velho Continente”, por exemplo, se transformou em um celeiro de idosos. Como a maioria dos países europeus não se preparou para essa nova realidade, muitas nações estão, hoje, endividadas por conta do custo dos seus idosos e dos consequentes gastos com aposentadorias e pensões, que estão tornando a máquina da previdência praticamente impagável.
Esses acontecimentos são preocupantes pois, se nem os países europeus conseguem arcar com as despesas geradas pelo envelhecimento da população, o que deve acontecer no Brasil, país em desenvolvimento onde a expectativa de vida é cada vez maior?
Os números comprovam essa urgência por soluções. Os brasileiros com mais de 65 anos de idade eram 5% da população no ano 2000, mas serão 18% em 2050. Além disso, muitos são os que optam por aposentar-se mais cedo, acelerando e aumentando bastante as despesas da Previdência Social com a concessão de benefícios.
Pelas regras atuais, os homens podem se aposentar após 35 anos de tempo de contribuição, e as mulheres, após 30 anos. Em 1999, o governo federal criou o fator previdenciário, segundo o qual quanto mais anos de contribuição e mais avançada a idade, maior o valor da aposentadoria. Mas os incentivos não são considerados vantajosos pela maioria dos trabalhadores. Como é possível ganhar o equivalente a 70% da média dos salários a partir dos 54 anos, a idade média dos homens que se aposentam, por exemplo, é muito baixa — 55 anos.
Na prática, o especialista em previdência social e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcelo Abi-Ramia Caetano, explica que um conjunto de fatores podem se tornar problemas para o sistema previdenciário brasileiro num futuro próximo. “Quando analisamos, isoladamente, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), podemos perceber que falta uma idade mínima para a aposentadoria. Por exemplo, na questão do tempo de contribuição, que é de 30 anos para mulheres e de 35 anos para homens, há pessoas se aposentando com 52 (mulheres) e 54 (homens) anos. São idades muito baixas, principalmente se as contrapomos com a expectativa de vida, que é cada vez maior. Outra questão que precisa de reforma é a das pensões por morte, pois não existe um limite de acumulação para esse benefício. Ainda temos, no Brasil, o salário mínimo crescendo acima da inflação, e com isso grande parte dos benefícios também aumentam além da inflação. Para a Previdência, isso é um grande problema”, afirma.
Já para a professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Lobato Gentil, que focou na Seguridade Social sua tese de doutorado, o principal problema da Previdência Social brasileira continua sendo o alto percentual dos trabalhadores que não têm cobertura previdenciária. “Esse número diminuiu bastante nos últimos anos, e hoje é de cerca de 43%, o que ainda é um percentual significativo. Isso acontece muito porque uma parcela grande da população está na informalidade, e há também os trabalhadores autônomos que não contribuem. Essas pessoas, principalmente os mais velhos, estão desprotegidos. O grande desafio é incorporar à Previdência essa parte da população”, destaca.
Todas essas questões interferem diretamente em um fator que pode ser considerado o ponto central da continuidade da concessão de benefícios previdenciários no Brasil: o déficit da Previdência Social. Mas, afinal, ele existe mesmo?
Seguridade Social e o déficit
A Constituição Federal de 1988 idealizou e implementou um modelo quadripartite de financiamento da Seguridade Social, através das contribuições sociais dos trabalhadores, dos empregadores, das empresas e de toda a sociedade (pelos impostos transferidos pela União). Essa diversidade de fontes de financiamento foi instituída para que a Seguridade Social não ficasse totalmente dependente das receitas provenientes das contribuições incidentes sobre a folha de salários, já que a massa salarial é a variável que mais se contrai nos períodos de redução dos níveis de atividade econômica.
A Constituição Federal de 1988 idealizou e implementou um modelo quadripartite de financiamento da Seguridade Social, através das contribuições sociais dos trabalhadores, dos empregadores, das empresas e de toda a sociedade (pelos impostos transferidos pela União). Essa diversidade de fontes de financiamento foi instituída para que a Seguridade Social não ficasse totalmente dependente das receitas provenientes das contribuições incidentes sobre a folha de salários, já que a massa salarial é a variável que mais se contrai nos períodos de redução dos níveis de atividade econômica.
Por conta dessa diversidade de financiamentos, a Seguridade Social brasileira não é e jamais será deficitária, como defendem os especialistas. Somente em 2012, por exemplo, as receitas da Seguridade Social – que além da Previdência, inclui as ações de assistência social e saúde — totalizaram R$590,6 bilhões, valor 11,8% superior às receitas do ano de 2011. Ainda em 2012, as despesas da Seguridade Social, por sua vez, foram de R$512,4 bilhões.
Diante desses números, é possível concluir que a Seguridade Social apresentou resultado superavitário nos anos de 2011 e 2012, respectivamente, de R$77,2 bilhões e R$78,1 bilhões, mesmo esses anos sendo de baixo crescimento econômico e de desoneração tributária sobre a folha (entenda no box a desoneração e seus impactos nas contas da Previdência Social). “Trata-se de um volume de recursos acima dos gastos que inviabiliza qualquer interpretação de falência ou de dificuldade financeira desse sistema”, alega Denise Lobato Gentil.
De acordo com a professora, uma outra questão interfere para que as pessoas acreditem que a Previdência Social brasileira é deficitária. “O crescimento real do salário mínimo é muito utilizado para dizer que esse ‘rombo’ da Previdência aumenta. Entretanto, quem utiliza esse argumento normalmente só considera o lado das despesas, esquecendo-se das receitas. É preciso lembrar que, com o aumento do número de trabalhadores empregados e o crescimento do salário médio, as receitas do governo também aumentam”, explicita.
Marcelo Caetano, porém, acredita que, se for levado em conta somente o orçamento da Previdência Social, o sistema é, sim, deficitário. Para o pesquisador do Ipea, contudo, o déficit não é o mais preocupante, e acaba desviando o foco da atenção dos verdadeiros problemas. “Mesmo com o déficit de R$ 40 bi/ano (valores oficiais divulgados), não conheço nenhum caso de pessoa que deixou de receber o benefício previdenciário. Independente do déficit, se os benefícios continuam a ser pagos, é porque o dinheiro está vindo do orçamento do Governo como um todo. É um dinheiro que não vem da contribuição previdenciária e paga os benefícios. Na prática, essas fontes de recursos se misturam. O superávit de um cobre o déficit de outro”, esclarece.
Segundo Marcelo, hoje a despesa previdenciária brasileira, incluindo gastos do INSS, com servidores públicos e militares, representa de 11 a 12% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. A arrecadação tributária, por outro lado, é de 33% do PIB. Ou seja, a cada R$3 de tributo arrecadado, R$1 será destinado a manter o sistema previdenciário. “Esse percentual é muito alto, principalmente se considerarmos que o Brasil é um país que ainda não está muito envelhecido. Diante das estimativas de aumento da expectativa de vida, e um maior envelhecimento da população, podemos prever que essa situação da previdência vai gerar uma grande pressão daqui a alguns anos. O gasto previdenciário brasileiro é muito alto para o padrão demográfico que temos, e com o envelhecimento esse gasto tende a se acelerar”, afirma Marcelo.
População mais velha, Previdência com mais gastos
O envelhecimento da população brasileira pode ser um agravante para um desarranjo no sistema previdenciário nacional. Uma projeção divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em agosto de 2013 mostra que a esperança de vida ao nascer entre os brasileiros deve atingir os 80 anos em 2041, chegando a 81,2 anos em 2060.
O envelhecimento da população brasileira pode ser um agravante para um desarranjo no sistema previdenciário nacional. Uma projeção divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em agosto de 2013 mostra que a esperança de vida ao nascer entre os brasileiros deve atingir os 80 anos em 2041, chegando a 81,2 anos em 2060.
“Dados oficiais divulgados pelo governo indicam que, atualmente, a despesa com o INSS é de 7,3% do PIB. Com as projeções para o envelhecimento da população, esse percentual deve chegar a 12,6% em 2050. Mas isso são hipóteses, a realidade pode ser melhor ou pior. Uma reforma previdenciária, até lá, pode mudar muito esse cenário projetado”, explica Marcelo Caetano.
Denise Lobato Gentil considera um mito dizer que o envelhecimento da população “quebrará” o sistema de Seguridade Social. “Isso é uma visão conservadora que quer entregar os idosos ao mercado, obrigando-os, por exemplo, a fazer fundos de previdência privada, o que seria muito lucrativo para os bancos. Nenhum sistema público entra em falência”, declara a professora.
Reforma controversa
Segundo Denise, a máquina previdenciária brasileira é uma das mais bem preparadas dos países em desenvolvimento. “A Previdência Social brasileira tem benefícios sociais para amparar a velhice e tem uma cobertura sobre essa velhice muito ampla. Ou seja, é capaz de atender ao maior número e idosos possível. Temos a institucionalidade para isso”, defende.
Segundo Denise, a máquina previdenciária brasileira é uma das mais bem preparadas dos países em desenvolvimento. “A Previdência Social brasileira tem benefícios sociais para amparar a velhice e tem uma cobertura sobre essa velhice muito ampla. Ou seja, é capaz de atender ao maior número e idosos possível. Temos a institucionalidade para isso”, defende.
A professora acredita que é muito difícil que a máquina da Previdência “quebre”. “A receita federal que mais cresce é a da Seguridade Social. Se o orçamento da Seguridade Social ‘quebrar’, o orçamento fiscal já terá ‘quebrado’ há muito tempo. Todo o crescimento da receita tributária dos últimos dez anos se deu em cima de tributos que incidem sobre a folha de pagamentos, sobre a renda dos trabalhadores. Se o salário médio e o salário mínimo sobem, as receitas do governo se ampliam de forma significativa. O discurso de ‘quebra’ da Previdência Social é implausível, porque grande parte da receita do governo vem de lá. Além disso, mesmo que a Seguridade Social entre em déficit, a Constituição Federal determina que qualquer déficit da Seguridade seja coberto com o orçamento fiscal”, garante.
Marcelo Caetano explica que o aumento dos gastos da Previdência Social brasileira nos últimos anos foi sustentado pela arrecadação tributária, que também cresceu consideravelmente. Porém, o pesquisador defende que seria inviável aumentar a carga tributária no País para cobrir possíveis novos gastos com a Previdência, já que a carga tributária no Brasil é bastante alta. “Há um limite do aumento de impostos, e por isso a reforma previdenciária é ainda mais importante”, assegura o pesquisador do Ipea.
Segundo ele, não há segredos para uma reforma previdenciária, como se pode se observar pelas experiências de outros países. “As reformas previdenciárias valem-se sempre dos mesmos instrumentos. Basicamente, o que acontece é aumentar a idade mínima para aposentadoria, ou aumentar o tempo de contribuição, ou reduzir o valor do benefício concedido, ou ainda aumentar o valor da contribuição previdenciária. Em qualquer lugar do mundo, as reformas seguem mais ou menos o mesmo padrão”, explica.
Denise é contrária à reforma previdenciária que aponta como alternativas o aumento do tempo de contribuição dos trabalhadores e a diminuição do valor dos benefícios. “Esse tipo de reforma foi pensada para limitar os benefícios e dificultar o acesso a eles. A nossa previdência já apresenta uma idade muito alta para que as pessoas possam ter acesso aos benefícios. Aumentar a idade para que a pessoa se aposente não é uma boa solução para o mercado brasileiro, em que idosos são facilmente substituídos por salários menores de jovens. O mercado não está preparado para acolher esses idosos, caso eles tenham que trabalhar por mais tempo. Do mesmo modo, é inviável reduzir o valor do benefício, pois 63% dos inativos no Brasil hoje ganham um salário mínimo. E é insustentável viver com menos que o salário mínimo, principalmente na terceira idade, quando aumentam as despesas com saúde”, justifica a professora da UFRJ.
Por isso, para ela, a solução não está na previdência, e sim muito mais pelas políticas que levem ao desenvolvimento econômico. “É fundamental uma nova política macroeconômica de defesa do pleno emprego dos trabalhadores ativos. Uma política fiscal geradora de emprego e não de recessão, e que ao mesmo tempo busque salários médios cada vez mais elevados, é imprescindível para manter a condição dos trabalhadores, que ajudarão a manter o sistema de previdência. Emprego e bom salário são fundamentais não apenas para elevar o padrão de vida, mas também para assegurar os recursos para os que já envelheceram”, acredita Denise.
Entretanto, é importante ressaltar que todas essas medidas devem ser de longo prazo. “O governo deve começar a agir hoje, através de iniciativas que busquem aumentar a produtividade do trabalho na economia. Se cada trabalhador passar a produzir mais do que produzia no mesmo posto de trabalho, essa produção pode ser dividida com os idosos. É necessária uma política que fortaleça a indústria e o comércio no Brasil, invista e ciência e tecnologia, aumente a qualificação da força de trabalho através da educação”, complementa a professora.
Mesmo com reformas, a Previdência Social não deve ser extinta e, de uma forma ou de outra, continuará existindo, porque a adesão a ela é compulsória. Diante de um cenário de tantas incertezas em relação ao futuro da Previdência Social brasileira, vale a pena abrir mão de iniciativas que possam resguardar os trabalhadores de hoje daqui a alguns anos, quando chegar a hora de suas aposentadorias, como os planos de previdência privada, por exemplo. “Mas é preciso ter cautela, pois muitas vezes as taxas de administração cobradas são muito elevadas”, ensina Marcelo Caetano.