Um pouco da história recente: o golpe militar no Chile e o fim do governo Salvador Allende, em 1973
- A queda de Allende contada por quem a viveu
“Os democratas do mundo inteiro reconhecem que Salvador Allende tentou mudar o Chile sem recurso à violência, através do exercício pleno das liberdades democráticas”, diz Mario Dujisin. O jornalista chileno radicado em Portugal desde 1990, que trabalhou com o Presidente morto há 40 anos, diz que é precisamente por isso que Allende era tão incómodo.
Cercado no Palacio de La Moneda pelo golpe militar de 11 de Setembro de 1973, Allende “matou-se depois de levar um tiro”, garante Dujisin, que então chefiava o departamento internacional e de imprensa estrangeira da Presidência da República. Durante um debate realizado esta tarde na Fundação Jose Saramago, o chileno explica que o levantamento, do qual viria a resultar a ditadura de Augusto Pinochet, foi “financiado pela direita política e económica chilena”, com a tolerância de governos estrangeiros e a colaboração financeira de grandes empresas, nomeadamente farmacêuticas alemãs.
O historiador Fernando Rosas considera que era “a possibilidade de a esquerda ganhar eleições” que assustava os promotores do golpe, sobretudo os Estados Unidos da América. Para Rosas, Allende, cuja Frente Popular venceu as eleições de 1970, foi vítima de um “ciclo de resposta” de Washington à “onda de sublevação” democrática na América Latina, que os EUA consideravam ser uma espécie de quintal traseiro.
Esse ciclo inicia-se, para o historiador, com o golpe brasileiro de 1964, contra o trabalhista João Goulart, e termina em 1975, com a instauração da ditadura argentina. “O golpe chileno foi organizado e dirigido meticulosamente pelos serviços secretos dos EUA”, diz Rosas, que aponta o dedo ainda ao aparelho judicial e à hierarquia católica do Chile.
CIA NÃO QUERIA PINOCHET
Dujisin crê, porém, que a CIA não apostava numa ditadura como a que o Chile veio a ter. “Queriam que Allende renunciasse, para apoiarem a democracia-cristã, mas o Departamento de Defesa americano queria um golpe. O que acontece é que os militares se precipitaram”. Dujisin conta que, na semana anterior ao golpe, Allende decidira convocar um plebiscito que confirmasse o seu mandato. Na quarta-feira, 12 de setembro de 1973, iria anunciá-lo num discurso à nação. Logo, “os militares adiantaram o golpe que já então planeavam para um dia antes”, explica o jornalista, que foi correspondente em Portugal da agência italiana ANSA, entre outros meios. Allende morreu numa terça-feira, quando “todos os golpes na América Latina tinham lugar ao fim de semana”.
Por uma questão da distribuição de turnos, Dujisin não estava no Palácio de La Moneda no dia fatídico. Vivia lá perto e, de manhã, teve a sensação de que um ruído de motocicleta não o deixava dormir. “Afinal não era uma mota, mas metralhadoras!”, conta. Impossibilitado pelos golpistas de chegar ao palácio, tentou comunicar a partir de uma casa de segurança que a presidência tinha nas redondezas. Os bombardeios aéreos não tardaram.
“O golpe foi cívico-militar e fez do Chile um enorme laboratório para as ideias económicas do neoliberalismo”, considera Dujisin. As ideias da escola de Chicago, e de Milton Friedman, eram “impossíveis de pôr em prática em democracia”, diz, para logo ironizar que hoje se aplicam por toda a Europa.
“O golpe inaugurou uma nova qualidade na violência repressiva”, comenta Rosas. Entre 1973 e 1990 – data do fim da ditadura, após referendo dois anos antes que Pinochet perdeu – morreram 3600 pessoas no Chile, executadas sumariamente ou vítimas da tortura. Cerca de 1000 continuam desaparecidas. O número de torturados, diz o historiador, alcançou os 28 mil naqueles 17 anos. Por comparação, nos 48 anos de ditadura em Portugal terão sido torturados 36 mil cidadãos.
A DIFÍCIL RECONCILIAÇÃO
“O objetivo era eliminar pela violência física toda a espécie de oposição política, social, etc.”, assegura Rosas, que se indigna ao recordar que “os cúmplices objetivos dos crimes da ditadura ainda aí estão hoje, tentando bloquear a recuperação da memória dos crimes”.
“Não houve julgamentos das violações dos direitos humanos”, lamenta Dujisin. “Nem sequer uma sanção moral”. Considera que os governos estrangeiros também deviam fazer um mea culpa e recorda que só dois – o de Mário Soares em Portugal e o de Giulio Andreotti em Itália – se recusaram a reconhecer o regime de Pinochet, rejeitando inclusive a presença de embaixadores chilenos nos seus países durante esse período.
A esquerda chilena – que governou entre 2000 e 2010 – fez, a seu ver, muito pouco pela memória histórica. “A direita fala de reconciliação, mas isso é quase como pedir aos judeus que se reconciliem com as SS”, ironiza Dujisin. “Um dia conheci uma mãe que perdeu cinco filhos durante a ditadura. Que reconciliação se lhe pode pedir?”. Também no campo económico a alternância democrática pouco mudou. “Sete famílias são donas do país. Mantém-se o neoliberalismo e a concentração de dinheiro nas classes mais altas”, diz Dujisin.
“A Argentina foi o país latino-americano que foi mais longe na reparação dos crimes históricos”, diz Rosas. Recentemente, o ditador Jorge Videla morreu na prisão. Pinochet faleceu em 2006, em liberdade. O juiz espanhol Baltasar Garzón chegou a conseguir a sua detenção, em 1998, em Londres, por violações dos direitos humanos, mas de volta ao Chile esteve apenas em prisão domiciliária. Quanto a Garzón, em Espanha foi demitido por ter querido abrir processos contra a ditadura franquista. “Os cães que o perseguiram puderam demiti-lo”, enfurece-se o historiador português.
As ditaduras latino-americanas acabaram “derrotadas pela resistência e pelos sacrifícios dos povos e pela mobilização da opinião pública”, considera Rosas. A esquerda acabou por voltar ao governo, em vários países da região, pela força do voto. Dujisin não acredita, contudo, que Allende pudesse alcançar hoje o poder. “É que há 30 anos os partidos socialistas eram de esquerda…”, atira.
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