1. Introdução: do que trata a MP nº 676/2015?
Durante a votação da Medida Provisória nº 664/2014
1, na
Câmara dos Deputados e depois no Senado, foi aprovada a Emenda nº 45,
inserindo a “fórmula 85/95”, sem regra de progressividade. Esse
dispositivo foi vetado pela Presidência da República, e a MP nº 676/2015
foi editada como alternativa, com uma progressão dos valores dessa
fórmula.
A Medida Provisória nº 676, de 2015, permite a opção, para fins de
aposentadoria, de não haver incidência do fator previdenciário no valor
da aposentadoria, caso em que ela seria integral, se a soma da idade ao
tempo de contribuição do segurado atingir os valores 85, para as
mulheres, e 95, para os homens. Segundo a MP, esses valores serão
aumentados anualmente em um (1) ponto a partir de 2017 e até 2022, com
exceção do ano eleitoral de 2018, conforme a seguinte Tabela 1.
Tabela 1 – Fórmula 85/95 progressiva
2. Qual a diferença da fórmula 85/95 em relação ao fator previdenciário?
Para fins de comparação com o fator previdenciário, tomemos o exemplo
da mulher de 55 anos com 30 de contribuição (somando 85) e do homem de
60 anos com 35 de contribuição (somando 95). Ambos satisfazem os
critérios da fórmula 85/95 para aposentadoria integral (100% do
salário-de-contribuição).
De acordo com a fórmula do fator previdenciário vigente hoje para
aposentadoria por tempo de contribuição, a mulher de 55 anos com 30 de
contribuição teria direito a uma aposentadoria no valor de 70% do
salário-de-contribuição, enquanto o homem de 60 anos com 35 de
contribuição teria direito a uma aposentadoria de 85%. Esse resultado é
apresentado na Tabela 2, abaixo.
Tabela 2 – Comparação do valor da aposentadoria em relação ao salário-de-contribuição2

Para obter o benefício de 100% pelas regras atuais, esta mesma mulher
teria de continuar trabalhando e contribuindo por mais quase 6 anos
(perto dos 61, com 36 de contribuição), quando o equilíbrio atuarial
pelo fator
previdenciário seria atingindo. No caso do homem, seriam necessários
quase 3 anos a mais (perto dos 63, com 38 de contribuição). No jargão da
fórmula 85/95, para esses dois exemplos, a aposentadoria integral
conforme o equilíbrio do fator previdenciário é obtida pela soma 97/101
(61+36 e 63+38).
Essa comparação evidencia o impacto financeiro nas contas do governo
da adoção da fórmula 85/95. A expectativa de sobrevida da mulher
brasileira de 55 anos, usada no exemplo, é de 28 anos. Assim, o tempo
esperado de usufruto da aposentadoria (28) é apenas ligeiramente menor
do que o tempo de contribuição ao sistema (30). Entretanto, pela fórmula
85/95 a aposentadoria tem o valor integral do salário-de-contribuição
(100%), mais de três vezes maior do que a alíquota de contribuição (31%,
somadas contribuições da trabalhadora e do empregador), o que ilustra o
desequilíbrio nas contas da Previdência (que mesmo o fator
previdenciário não é capaz de compensar integralmente).
Assim, cumpre ressaltar que, embora a apresentação das contas gere a
impressão de que o fator previdenciário causa “perda”, em verdade o
fator tenta evitar qualquer perda (ou ganho) em termos de valor esperado
do fluxo de pagamento de contribuições e do fluxo recebimento da
aposentadoria. A impressão de perda existe pela “ancoragem” no valor do
salário-de-contribuição, que é tomado como referência pelo segurado e
por um imaginário social de que 30 anos de trabalho para uma mulher e 35
anos para o homem é muito tempo, que deveria ser suficiente para a
pessoa se aposentar.
3. Comparação internacional: fator previdenciário ou fórmula 85/95?
Muitos países passaram ou passam pela transição demográfica que o
Brasil vem enfrentando de forma cada vez mais acentuada: o aumento da
expectativa de sobrevida da população conjugado à redução nas taxas de
natalidade da população (envelhecimento). Como a previdência pública
opera pelo regime de repartição, em que as contribuições dos
trabalhadores da ativa financiam as aposentadorias dos inativos, os
sistemas de previdência ficam comprometidos à medida que se amplia o
contingente de benefícios pagos e se reduz o contingente de
contribuições feitas.
Assim, em se tratando de fenômeno que não é exclusivo do Brasil, é
pertinente fazer uma análise comparada. Que tipo de regras adotam para
financiar os seus sistemas os países desenvolvidos (substancialmente
mais ricos que o Brasil) e os países emergentes (de perfil demográfico
mais próximo ao brasileiro)? Qual regra é mais usada: a do fator
previdenciário ou a da fórmula 85/95?
A resposta é nenhuma das duas. A regra, tanto em países ricos quando
em emergentes, é o estabelecimento de uma idade mínima para
aposentadoria, inexistindo a possibilidade de aposentadoria apenas por
tempo de contribuição (evidentemente que existem requisitos de tempo de
contribuição, além da idade mínima, além de haver previsão para
aposentadoria por invalidez). A idade mínima não existe no Regime Geral
da Previdência Social (o operado pelo INSS), mas vigora para novos
entrantes do serviço público desde a primeira reforma da Previdência
(Emenda Constitucional nº 20, de 1998).
A Tabela 3 apresenta as regras de aposentadoria por idade mínima em países da América do Sul, do G20 e do Brasil.
Tabela 3 – Idade mínima para aposentadoria – América do Sul, G20 e Brasil

No Brasil, onde não existe a idade mínima, calculamos que a média das
aposentadorias por tempo de contribuição no meio urbano se dá aos 53
anos e 11 meses, sendo de 54 anos e 10 meses para os homens e 52 anos
para as mulheres
3. Como evidencia a comparação com a Tabela,
tais idades não permitiriam aposentadoria nem em países com baixa
expectativa de vida, como a Índia ou a Indonésia.
Cumpre destacar algumas informações da Tabela comparativa. Mesmo
países latino-americanos como a Argentina, México, Chile e Peru exigem
idade mínima de 65 anos para a aposentadoria dos homens, bem acima da
idade média praticada no Brasil. Observa-se também que muitos países,
tanto sul-americanos como participantes do G20, vêm reduzindo ou mesmo
extinguindo as diferenças para concessão das aposentadorias de homens e
mulheres, por conta de a expectativa de vida feminina ser mais alta e
pela mudança da sua participação no mercado de trabalho.
4. Como a Previdência é afetada pela transição demográfica (envelhecimento da população)?
A transição demográfica já consistia em uma grave preocupação, mesmo
com a presença do fator previdenciário. O Tribunal de Contas da União
(TCU) estima, com o fator, um déficit atuarial do RGPS de incríveis R$ 3
trilhões para o ano de 2050
4. Por sua vez, a Organização
para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) estima que nas próximas décadas
a expectativa de sobrevida do idoso brasileiro deverá até superar a do
americano, a do dinamarquês e do cidadão da União Europeia
5.
Esse envelhecimento da população pode ser visualizado nas Figuras 1 a
3, que apresentam a pirâmide etária do país em 2015 e também 35 anos
atrás, em 1980, e a projetada para daqui a 35 anos, em 2050. As
pirâmides evidenciam as dificuldades da Previdência: ela opera pelo
regime de repartição, em que as parcelas mais jovens da população (as
faixas inferiores das pirâmides), no mercado de trabalho, financiam as
aposentadorias das parcelas mais idosas (as faixas superiores das
pirâmides). No mesmo sentido, a Figura 4 mostra a evolução do
contingente de brasileiros acima de 60 anos, entre 1980 e 2050.
Mesmo atualmente, em que a transição está longe de ser completada
(conforme as figuras abaixo), o RGPS, que não inclui servidores civis e
militares, ostentou um déficit de cerca de R$ 57 bilhões em 2014, mais
de duas vezes o custo anual do Programa Bolsa Família.
Figuras 1 a 3 – Transição demográfica e envelhecimento da população: pirâmide etária do Brasil em 1980, 2015 e 2050 (projetada)
Figura 4 – Contingente de brasileiros acima de 60 anos entre 1980 e 2050 (projeção)

O envelhecimento da população é normalmente entendido de maneira
errônea, apenas como o fato de os brasileiros estarem vivendo mais. Na
verdade, ele se refere ao aumento da composição de idosos na população,
que deve também, em boa parte, pela redução da taxa de natalidade no
país.
Trata-se da redução de nascimentos na população e, portanto, a médio
prazo, de população economicamente ativa (PEA), apta a trabalhar e
financiar a Previdência. Este é um fenômeno mundial, que também ocorre
no Brasil há muitos anos, sendo inexorável e não podendo ser revertido
por meio de políticas públicas. Segundo o IBGE, atualmente existem cerca
de 7 trabalhadores para cada aposentado. Em poucas décadas, chegaremos
ao número de 2 para cada um.
5. A fórmula 85/95 reduz ou aumenta a desigualdade de renda?
Cabe observar que a fórmula 85/95 atinge os beneficiários do RGPS
mais bem posicionados na distribuição de renda. Isso porque o fator
previdenciário respeitou o piso de um salário mínimo, e porque as
aposentadorias por tempo de contribuição são substancialmente maiores
que a aposentadoria por idade e que outros benefícios. A aposentadoria
por idade exige apenas 15 anos de contribuição, atingindo os segurados
que não conseguiram por tanto tempo uma colocação no mercado de trabalho
formal.
Em março de 2015, mesmo com a incidência do fator previdenciário, a
média das aposentadorias por tempo de contribuição concedidas estava bem
acima da média dos outros benefícios concedidos pela Previdência: 92%
acima sobre a média das aposentadorias por idade, 51% acima sobre as
pensões por morte, 50% acima sobre as aposentadorias por invalidez e
133% acima sobre o valor do Benefício de Prestação Continuada (BPC,
destinado ao idosos pobres que não tem aposentadoria)
6, conforme o Gráfico 1.
Gráfico 1 – Comparação do valor médio da aposentadoria por tempo de contribuição e de outros benefícios

No âmbito da Previdência Social e da Seguridade Social como um todo, a
fórmula 85/95 é mais regressiva em relação ao fator previdenciário, ou
seja, efetivamente concentra mais renda.
6. O conflito federativo na Previdência: quem paga o custo da nova fórmula?
Embora pareça benéfica para todos os segurados do País, a fórmula
85/95 atinge apenas o benefício da aposentadoria por tempo de
contribuição, que é concentrado de maneira desproporcional em algumas
regiões do país. Isso ocorre porque
i) a composição demográfica é diferente no país, com alguns estados tendo população mais idosa do que outros e;
ii) a
aposentadoria por tempo de contribuição exige o mínimo de 30/35 anos de
carteira assinada, que muitos trabalhadores de regiões pobres não
puderam atingir.
Por isso, enquanto nas regiões mais pobres predominam os benefícios
da aposentadoria por idade, o benefício rural ou o Benefício de
Prestação Continuada (BPC, assistencial) — concentrados na faixa de um
salário mínimo —, nas regiões mais ricas há maior incidência da
aposentadoria por tempo de contribuição, que tende a ter um valor maior.
Gráfico 2 – Valor anual médio (per capita) recebido em cada Estado e região por aposentadoria por tempo de contribuição

O Gráfico 2, acima, detalha, por Estado, os gastos com a aposentadoria por tempo de contribuição,
per capita, evidenciando a regressividade regional da Previdência urbana:
Entretanto, como a Previdência opera no regime de repartição, em que
as contribuições dos mais jovens financiam as aposentadorias dos mais
velhos, os Estados mais pobres, de população mais jovem, financiam
indiretamente os benefícios dos Estados mais ricos, de população mais
idosa. Ainda, por ser o INSS deficitário e coberto por recursos do
Tesouro, a conta da Previdência é paga com recursos que poderiam ser
direcionados para as regiões mais carentes, via educação, saúde ou
saneamento básico, por exemplo.
Essa situação de subsídios cruzados na Federação tende a se agravar
com a alternativa proposta ao fator previdenciário, já que apenas a
aposentadoria por tempo de contribuição é afetada por ela, não havendo
qualquer reajuste adicional para os outros benefícios, como o rural ou o
BPC.
O mais grave, quando os Estados pobres envelhecerem, a fórmula já vai
ser insustentável e boa parte dos trabalhadores dessas regiões
inevitavelmente irá se aposentar sob regras muito mais duras do que as
vigentes hoje para os benefícios que eles ajudaram a financiar, já que
eles chegarão “atrasados” na transição demográfica. O Amapá, por
exemplo, recebe cerca de 14 vezes menos,
per capita, do que Estados como São Paulo ou Rio Grande do Sul.
7. Considerações finais
Cumpre ressaltar que mesmo o fator previdenciário, embora mais
sustentável do que a fórmula 85/95 (progressiva ou não), ainda não seria
suficiente para equilibrar a Previdência no futuro.
O problema é que a fórmula proposta pelo governo parte de um ponto de
partida relativamente baixo (85 pontos para mulher, 95 pontos para
homem), bem como termina a progressão de maneira muito rápida (90 pontos
para mulher, 100 pontos para homem). Ainda, em virtude da maior
expectativa das mulheres, o diferencial de 10 pontos terá,
inevitavelmente, de ser revisto no futuro.
Diante do exposto, especialistas têm apontado que a fórmula proposta
configura uma “contrarreforma” da Previdência, podendo causar o
rebaixamento da nota de crédito do país pelas agências de risco
internacionais e o consequente aumento da taxa de juros do Brasil
7.
Essa nova fórmula é apresentada como “benéfica” para os segurados da
Previdência, mas o que mostramos aqui é que esse benefício, assim como o
custo, não são uniformes entre as regiões e podem representar um custo
excessivamente elevado para a população jovem do país.