Fim do fator previdenciário pode gerar uma conta alta para a próxima geração
Entenda por que a mudança nas regras da aposentadoria foi um retrocesso
PAULO TAFNER/Artigo publicado na revista Época
Em qualquer país minimamente organizado, quando o assunto éPrevidência Social, só se fala na necessidade de reformar. Por quê? Cada país tem suas razões, mas há algo em comum à maioria: apopulação está envelhecendo. Em breve, haverá menos gente jovem para sustentar essa despesa e mais gente idosa que
dependerá de transferências previdenciárias. A situação brasileira é
ainda mais grave: já gastamos muito, num país ainda relativamente jovem.
O gasto total com benefícios previdenciários tem ficado em torno de
11% do PIB.
A tendência é crescer. Há pouco mais de uma dezena de países com gastos
superiores ao brasileiro, mas todos com uma relação entre número de
cidadãos ativos e número de idosos duas vezes pior que a nossa, do ponto
de vista
previdenciário. Em 1980, a população
brasileira apta a trabalhar representava 56% do total e apenas 6% eram
beneficiários da Previdência. Para cada beneficiário, havia nove
produtores de riqueza. Em 2020, para cada recebedor de benefícios,
haverá apenas cinco ativos. E em 2050, para cada beneficiário, haverá
1,9 ativo. O sistema caminha para a inviabilidade.
Nosso
sistema previdenciário, como em boa parte do
mundo, se estrutura sob o princípio de repartição: a geração ativa
financia os benefícios da geração que já se aposentou. Se uma geração de
pessoas na ativa for muito pequena, em comparação com a geração idosa
que precisa sustentar, será mais difícil fechar as contas. Torna-se
necessário:
1)
tributar mais a população ou 2) obter ganhos expressivos de
produtividade (ou seja, cada indivíduo passar a produzir mais) ou 3)
endurecer as regras para a obtenção dos benefícios.
Tentar corrigir o problema pelo aumento de alíquotas parece
impossível. Ninguém aguenta mais tributos. A alíquota média no
financiamento da Previdência é de 31%, sendo 11% para os trabalhadores e
20% para as empresas. É melhor aumentar a produtividade do trabalhador e
endurecer as regras do benefício. Mas elevar a produtividade exigirá
investir em infraestrutura e prover educação de qualidade melhor do que
temos hoje. Não temos sinal, no momento, de que conseguiremos superar
nenhum desses dois desafios.
Resta-nos mudar nossas regras para aposentadorias e pensões. Isso foi
feito em etapas: em 1998, a Emenda Constitucional 20 estabeleceu regras
mais rígidas para aposentadorias, nos setores público e privado. Em
1999, foi introduzido o
fator previdenciário, que leva em conta no cálculo da aposentadoria, de forma justa, a
expectativa de vida do
cidadão no momento em que ele se aposenta. Em 2003, a Emenda
Constitucional 41 generalizou regras mais duras para todos os
trabalhadores do setor público. Mais recentemente, a Medida Provisória
664 tentava moralizar a pensão por morte. O Congresso, em vez de buscar
esse aprimoramento, fez o contrário. Desfigurou a MP 664 e
acabou com o fator previdenciário. Colocou em seu lugar a
regra “85/95”, que ignora a constante evolução da expectativa de vida do brasileiro.
A grande maioria de parlamentares do PT, que, corretamente, em 2003,
aprovou a fixação de idade mínima de aposentadoria para trabalhadores do
setor público, votou agora pela derrubada do fator previdenciário, sem
fixação de idade mínima para aposentadoria. O mesmo ocorreu com boa
parte de parlamentares do PMDB, também da base de sustentação do
governo. Igualmente grave é o fato de que vários parlamentares do PSDB
que em 1999 haviam aprovado, corretamente, o fator previdenciário
votaram agora a favor de sua derrubada. Restou à presidente
Dilma Rousseff vetar o projeto, na quarta-feira da semana passada.
Grande parte das críticas ao fator previdenciário parte de quem nem
tenta compreendê-lo. Em 1999, diante da recusa do Congresso em fixar
idades mínimas para aposentadorias, o então presidente
Fernando Henrique Cardoso criou o fator previdenciário editando
a Lei no 9.876. Trata-se de um artifício engenhoso, que substitui
imperfeitamente a exigência de idades mínimas para aposentadoria. Para
identificação do fator a ser aplicado a cada trabalhador, o cálculo leva
em conta o
tempo de contribuição, a
idade de aposentadoria e a
expectativa de sobrevida no momento da
aposentadoria. Multiplica-se esse fator pelo
valor-base do benefício, definido pela média dos
80% maiores salários de contribuição,
computados a partir de julho de 1994. Feitos os cálculos, se o fator
for igual a 1, o valor da aposentadoria será integral, igual ao
valor-base de contribuição. Se for maior do que 1, o valor da
aposentadoria será maior que o valor integral (isso tende a ocorrer com
quem trabalha por mais tempo e atrasa o pedido de aposentadoria, o que é
benéfico para a coletividade). Se o fator for menor que 1, o benefício
será menor que o integral (o que tende a ocorrer com quem se apressa em
se aposentar). Para mulheres e professores dos níveis fundamental e
médio, somam-se cinco anos ao tempo de contribuição.
Costumo explicar o fator com um exemplo bem simples. Imaginem que
dois trabalhadores homens comecem a trabalhar no mesmo dia, um com 15
anos e outro com 25 anos. Imaginem que ambos fiquem empregados todo o
tempo de sua jornada profissional e que tenham a mesma trajetória na
carreira. Após 35 anos de trabalho, ambos poderão se aposentar e terão
acumulado o mesmo montante com contribuições previdenciárias. A
diferença é que, no momento da aposentadoria, o primeiro terá 50 anos e o
segundo 60 anos. Pelas tábuas atuais de mortalidade do IBGE, o primeiro
deverá sobreviver mais 28 anos e o segundo apenas 20 anos. Como ambos
têm o mesmo montante acumulado, se o mais velho receber R$ 1.000 por mês
ao longo de 20 anos, o mais jovem deveria receber cerca de R$ 723, pois
desfrutará a aposentadoria por oito anos a mais que o outro. É justo
que, recebendo mensalmente valores diferentes, ao final, ambos tenham
recebido o mesmo total. Em substituição a essa fórmula racional, o
Congresso apresentou sua proposta ruim, a da regra “85/95”, vetada por
Dilma.

Por essa regra, pode se aposentar com o benefício integral o cidadão
cuja soma de idade com tempo de contribuição resultar em 95 anos, no
caso dos homens, ou 85 anos, no caso das mulheres. Em ambos os casos,
docentes do ensino fundamental ou médio acrescentam cinco anos ao tempo
de contribuição. Qual é o impacto da proposta?
Suponha um homem que comece a trabalhar aos 20 anos e permaneça
contribuindo até poder se aposentar. Na regra atual, ele pode se
aposentar aos 55 anos. Como ainda é jovem e deverá viver por mais quase
24 anos, seu fator previdenciário será 0,72, ou seja, o valor de sua
aposentadoria será 72% do valor-base. Se for paciente e esperar três
anos, pode se aposentar aos 58. Ainda é jovem e deverá viver por 21
anos, mas o fator previdenciário o premia por adiar a aposentadoria e
eleva o benefício a 88% do valor-base. Pela regra “85/95”, ele não
poderia se aposentar aos 55 anos. Mas aos 58 (ainda relativamente jovem)
já poderia se aposentar com o benefício integral. E o aumento de gasto
para a sociedade, da ordem de 13%, se prolongará por 21 anos, enquanto
esse cidadão viver.
No caso das mulheres, a diferença é ainda maior. Suponha que ela
tenha começado a trabalhar aos 20 anos. Pela regra atual, ela poderia se
aposentar aos 50 anos, com 60% do benefício integral, ou aos 53, com
77%. Pela regra “85/95” ela não poderia se aposentar aos 50, mas já
teria direito ao benefício integral aos 53 anos, com expectativa de vida
de quase 30 anos pela frente. Trata-se de um aumento de quase 30% nas
despesas para a sociedade, ao longo de três décadas de sobrevida da
cidadã.
A
regra “85/95” traz uma pequena
redução no crescimento da despesa previdenciária nos próximos
dois a três anos. A partir daí, o aumento do gasto será enorme. Mantida essa regra, o gasto será
8% maior em 2020,
20% maior em 2030 e
33% maior em 2050. Será um fardo sobre os bebês de hoje, que estarão ainda na ativa.
Se o prejuízo é óbvio, por que o defendem de forma tão barulhenta?
Porque a mudança atinge um grupo de elite entre os trabalhadores. O
fator previdenciário atinge a aposentadoria por tempo de contribuição,
ou seja, os que, após 35 anos de contribuição, podem requerer a
aposentadoria. Esse grupo tende a ser mais qualificado. Só que o
trabalhador brasileiro típico se aposenta por idade, sofre períodos de
desemprego, passa pela informalidade e não junta 35 anos de
contribuição.
Apenas 28% das aposentadorias são por
tempo de contribuição, mas elas consomem quase metade do total das despesas.
No mundo da política, o bom-senso padece. O governo errou ao enviar
ao Congresso uma Medida Provisória com mudanças nas regras de pensão sem
antes voltar a informar os parlamentares sobre o que eles já sabem – o
gravíssimo problema das contas públicas e do sistema previdenciário.
Assim, ocorreram a desfiguração do projeto de pensões e a derrubada do
fator previdenciário. Restou ao Executivo vetar e apresentar outra
Medida Provisória, que propõe aumento progressivo da regra “85/95”. O
aumento se inicia em 2017 até se tornar, em 2022, “90/100”. É melhor do
que a regra pura “85/95”, mas é um retrocesso. A regra pura “85/95”
faria com que em 2030 o gasto previdenciário crescesse 20%. Com a
tentativa do Executivo de remediar um pouco o malfeito, o aumento ainda
será de 18,5%. Trata-se de uma
contrarreforma, rumo ao
passado. O episódio deixou claro que o Brasil corre sérios riscos e que
nossos representantes eleitos têm cabeças de ontem, saudosas do Brasil
de anteontem.