O pesadelo do holocausto. Sobrevivente do extermínio de judeus pelos nazistas relata drama 70 anos depois do fim da tragédia
“Ainda tenho pesadelos”, diz sobrevivente 70 anos após o fim do Holocausto
Amanda Campos/ iG São Paulo
Julio Gartner e Henry Nekrycz vivem no Brasil; nazismo matou cerca de 6 milhões de judeus durante a 2ª Guerra Mundial
O ruído dos coturnos avançando ritmicamente pelas pequenas ruas do
Gueto de Cracóvia, Polônia, ainda repercute nos ouvidos de Julio Gartner
mesmo 73 anos após cerca de 15 mil judeus terem sido retirados do local
pelas tropas nazistas e terem sido levados de maneira arbitrária a
campos de concentração, inclusive a Plaszow – o primeiro dos cinco que
Gartner viveria durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945).
Reprodução/Youtube
Julio Gartner sobreviveu após passar por cinco campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial
“Durante muitos anos, quando eu
fechava os olhos para dormir, vinham aquelas imagens na minha mente:
correria, choro de crianças, o ruído dos soldados matando os moradores e
invadindo os apartamentos. Às vezes ainda tenho pesadelos com isso”,
diz Gartner aoiG.
O judeu conta que levou uma vida normal junto aos pais e ao irmão por
algum tempo depois de a Polônia ter sido conquistada pelas tropas de
Adolf Hitler (1889—1945). Mas ao notar os perigos que as tropas
representavam para o país, a família optou por ajudar o irmão do judeu a
fugir para a União Soviética enquanto Gartner decidiu ficar com os pais
e os 3 mil habitantes que ocupavam o distrito composto por 30
ruas e 320 construções residenciais. Há cerca de 260 km dali, na cidade
polonesa de Lodz, Henry Nekrycz, também conhecido pelo pseudônimo de Ben
Abraham, viu seu mundo desmoronar quando os soldados nazistas invadiram
o gueto onde morava “do dia para a noite”, como ele mesmo resume, em
1944. À época, o jovem de 19 anos morava com a mãe, Ida Nekryczque, que
nunca mais foi vista após após ter sido enviada ao campo de concentração
de Auschwitz.
“Foi uma surpresa. Ninguém esperava uma ação como aquela. Eles
invadiram o gueto e começaram a levar os judeus. Minha mãe foi morta em
uma câmara de gás. Meu pai já havia sido morto antes, em 1942″, diz. Em Lodz, dezenas de milhares de
judeus morreram por motivos como fome, doenças e em consequência de
crimes violentos de 1940 a 1944. Além desses problemas, os nazistas
enviaram até 80 mil prisioneiros para o campo de extermínio de Chelmno.
Os que assim como Nekryczque e sua mãe ainda estavam vivos quando o
gueto foi dissolvido, em 1944, foram deportados para Auschwitz. Memórias Reprodução/Internet
Henry Nekrycz, também conhecido como Ben Abraham, saiu de Auschwitz pesando 28 kg e com tuberculose
Das inúmeras lembranças dolorosas que Gartner carrega na memória, a
dos pais, em especial, deixa sua voz embargada. O judeu lembra que ambos
foram mortos na câmara de gás assim que chegaram a Plaszow. “Nem tive
tempo de me despedir”, lamenta.
“Não saberia dizer por que eles, e não eu, morreram. Não foi uma
questão de idade porque muitos outros jovens também foram mortos. O que
aconteceu comigo foi sorte”, continua ele.
Para que o mundo também não esqueça das atrocidades cometidas nessa
época, a ONU usou o dia 27 de janeiro, data que marca o fim
de Auschwitz, para criar o Dia de Lembrança Internacional do
Holocausto. De acordo com a entidade, o regime nazista e seus
colaboradores assassinaram sistematicamente cerca de 6 milhões de
judeus.
Sob o comando do comandante austríaco Amon Leopold Göth (1908-1946),
Gartner e outros milhares eram submetidos a mais de 12 horas de
trabalhos forçados em áreas como pedreiras e o campo. Para superar,
entre outras coisas, a fome e a desidratação que o levaram a pesar 34 Kg
em 1945, o judeu afirma ter vivido “um dia por vez”.
“A vida no campo era uma luta diária. Cada dia que se sobrevivia era
encarado como uma vitória. Só pensava se eu conseguiria sobreviver mais
um dia. Mas no fundo, me prendia a esperança de que aquele martírio
acabaria e eu seria livre outra vez”, lembra.
O fim do pesadelo de Gartner e dos outros judeus presos no campo de
concentração aconteceu em 1945, quando os portões de Auschwitz ficaram
para trás. O polonês então conseguiu ajuda de camponeses e foi internado
por vários meses até se recuperar dos problemas de saúde
Para Henry Nekrycz, porém, a sensação de liberdade demorou um pouco
mais. Dois anos a mais do que Gartner, exatamente. É que, depois de
passar pelos campos de concentração de Brauschweig, Watenstadt e
Ravensbruck entre 1943 e 1945, e Auschwitz, onde sua família foi
dizimada, e ser libertado até antes do compatriota ele teve de ser
hospitalizado às pressas. Além de pesar apenas 28 kg à época, ele estava
tuberculoso e sofria de diarréia.
“Sobreviver àquela doença era um milagre. Fiquei internado por vários
anos até conseguir me restabelecer. Não sei porque consegui esse
triunfo duas vezes. Foi sorte ou acaso”, confessa. Destino final: Brasil
A vinda ao Brasil não foi a primeira ideia de Gartner quando ele
deixou o hospital após meses de internação. Antes disso ele seguiu para
Santa Maria del Bagno, Itália, até se restabelecer. Foi lá que ficou
sabendo do paradeiro do irmão, que após ficar recluso na União
Soviética, havia voltado para Cracóvia. De volta a sua terra natal,
descobriu que o irmão havia comprado passagens para a América do Sul, e
decidiu segui-lo até o Rio de Janeiro.
Ao atracar no território
brasileiro em 1947, ele afirma ter logo se mudado para São Paulo e, com
ajuda de outros judeus, se firmou no País. ”Cheguei a São Paulo e recebi
ajuda da Congregação Israelita paulista para arrumar emprego em uma
fábrica de confecções, onde fiquei por três décadas”, lembra. Na capital
paulista ele conheceu a mulher, a italiana Perla Matilda, com quem foi
casado até o fim da vida dela, há mais de dez anos.
Oito anos depois da chegada de Gartner, Nekrycz chegou ao Brasil
recuperado “milagrosamente”, como ele mesmo afirma, de seus problemas de
saúde. Ele lembra ter desembarcado no dia 21 de Janeiro de 1955. Um ano
depois, em 1956, se casou com Miriam Dvora Bryk, com quem está até
hoje.
“Escolhi este país como meu e nunca me arrependi. Meu pai sempre
dizia, mesmo antes da guerra, que aqui vivia um povo bondoso e que havia
como crescer”, diz ele, que é aposentado, mas atuou a vida inteira na
indústria.
Gartner compartilha da imagem de Nekrycz sobre o Brasil. ”Não há
lugar melhor para se viver do que o Brasil. Os políticos prejudicam
bastante o País, é verdade, mas aqui encontrei um lar que respeita a
minha religião e minhas diferenças culturais”, pondera.
Nenhum comentário:
Postar um comentário