RESUMO:O instituto conhecido como “desaposentação”
encontra-se no centro das discussões relativas aos direitos sociais no
Brasil. Sua inclusão no ordenamento jurídico pátrio é, além de possível,
provável e necessária. Porém, a forma como o instituto é entendido deve
ser estudada com cautela. O direito ao recebimento mensal da
aposentadoria é entendido pela jurisprudência como um direito de
natureza patrimonial e, por essa natureza, o seu titular pode dispor do
mesmo, tornando possível até mesmo que este seja renunciado. Porém,
desaposentação é mais um direito social dentro do Regime Geral de
Previdência Social e, portanto, possui status de direito fundamental em
nosso ordenamento, necessitando do amparo estatal para que em seu
exercício ele seja tratado como tal para cumprir com os objetivos
elencados no artigo 3º da Constituição Federal de 1988.
1 INTRODUÇÃO
Estima-se que no Brasil tramitam
mais de 120 mil ações de desaposentação dentro dos Tribunais Regionais
Federais, sendo que, somente entre os meses de Janeiro e Agosto do ano
de 2014, 34.284 ações foram ajuizadas.[1]
A Desaposentação recentemente despertou enorme curiosidade e atenção
do mundo jurídico, quando o Supremo Tribunal Federal, por meio de seu
relator o Ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu a existência de
repercussão geral do tema ao julgar o Recurso Extraordinário número
661256. A posição jurisprudencial dominante defende a possibilidade
jurídica e fática do instituto, sendo que, após o julgamento da questão
repetitiva acima citada, será uniformizado o seu entendimento.
Atualmente é raro um manual de Direito Previdenciário que não aborde o
tema e, particularmente, destaco as seguintes obras: “Desaposentação”,
de Wladimir Novaes Martinez; “Desaposentação, novas perspectivas
teóricas e práticas”, de Marco Aurélio Serau Júnior; e “Desaposentação,
aspectos teóricos e práticos”, de Sérgio Henrique Salvador e Theodoro
Vicente Agostinho. Além destes, destaco a significativa contribuição dos
trabalhos: “Previdência Social na Era do Envelhecimento”, de Elody
Boulhosa Nassar; e “Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais:
contributo para um balanço aos vinte anos da Constituição Federal de
1988”, de Ingo Wolfgang Sarlet, fontes riquíssimas de saber e de
conhecimento sobre o tema.
A desaposentação é entendida majoritariamente como sendo a
possibilidade de o segurado aposentado que retorna ao trabalho renunciar
à aposentadoria que recebia para que passe a receber outra
aposentadoria, obrigatoriamente, mais vantajosa. Tal possibilidade é
justificada pois tem-se entendido que as aposentadorias são direitos
patrimoniais e, em consequência, disponíveis e, portanto, renunciáveis.
Todavia classificar as aposentadorias como mero direito patrimonial é
demasiado perigoso, pois torna este direito vulnerável a supressões
desarrazoadas, sendo este o principal fato motivador da escolha do tema.
Isto posto, o presente trabalho irá trabalhar a Desaposentação,
analisando a forma que esta é entendida em nosso ordenamento jurídico, o
seu conceito, bem como demonstrar sua natureza, tratando sobre a
possibilidade fático-jurídica de este ser positivado. Ademais, o
presente trabalho busca estudar o tema levando-se em conta que os
Direitos Sociais possuem status de direitos fundamentais em nosso
ordenamento, observando as consequências de gozarem desse status,
questionamentos e considerações que, certamente, contribuirão para
enriquecer o debate sobre o tema.
No primeiro capítulo trataremos sobre a forma que é atualmente
entendida a Desaposentação, bem como sua posição dentro do Regime Geral
de Previdência Social. No capítulo seguinte será trabalhada a evolução
do Sistema de Seguridade Social ocorrida no Brasil e no mundo. No
terceiro capítulo serão estudados os princípios que regem a Previdência
Social, seguida pelo capítulo que trabalhará sobre os Projetos de Lei
que já foram trataram sobre o tema até hoje.
2 A DESAPOSENTAÇÃO DENTRO DO RGPS
O instituto técnico da Desaposentação despertou maior interesse dos
profissionais do Direito Previdenciário no ano de 2014. Porém, desde o
ano de 1996 a temática já era trabalhada pela doutrina e, desde então,
inúmeras ações vêm sendo intentadas e, na maioria dos casos, deferidas
pela via Judicial.[2]
O instituto começou a ser debatido pelo ilustre Professor Wladimir
Novaes Martinez, sendo este quem utilizou pela primeira vez a expressão
“desaposentação”. Martinez definia a desaposentação como o “ato de
desconstituição de aposentadoria para obtenção de outro benefício mais
vantajoso”[3]. Ainda, em sua obra “Subsídios para um modelo de
previdência social”, ao tratar sobre a Irreversibilidade dos benefícios
previdenciários, defende que, se for a vontade do titular, existe a
possibilidade de desaposentação. Ademais, o mesmo autor demonstrou a
possibilidade trazida pela Lei 6.903/81, a qual previa uma forma
assemelhada do instituto objeto deste estudo quando analisados em
conjunto os seus arts. 1º e 9º, in verbis:
Art. 1º – A aposentadoria do juiz temporário do Poder
Judiciário da União, prevista no parágrafo único do artigo 74 da Lei
Complementar nº 35, de 14 de março de 1979, dar-se-á nos termos desta
Lei.
Parágrafo único – O benefício de que trata este artigo é devido:
a) aos ministros classistas do Tribunal Superior do Trabalho;
b) aos juízes classistas dos Tribunais Regionais do Trabalho;
c) aos magistrados de que tratamos artigos 131, item II, e 133, item
III, da Constituição Federal; aos juízes classistas que, como vogais,
integram as Juntas de Conciliação e Julgamento.
Art. 9º – Ao inativo do Tesouro Nacional ou da Previdência Social que
estiver no exercício do cargo de juiz temporário e fizer jus à
aposentadoria nos termos desta Lei, é lícito optar pelo benefício que
mais lhe convier, cancelando-se aquele excluído pela opção.[4]
Estes direitos foram concedidos, através do ato nº 119/94 do TRT da
23ª Região[5], para os Juízes Manoel Alves Coelho e Benedito Gomes
Ferreira.
Conforme observa o Professor Marco Aurélio Serau Júnior, a atual Lei
de Benefícios (8.213/91) traz em seu art. 122 uma forma de opção pelo
benefício previdenciário mais vantajoso, nos seguintes termos:
Art. 122. Se mais vantajoso, fica assegurado o direito à
aposentadoria, nas condições legalmente previstas na data do cumprimento
de todos os requisitos necessários à obtenção do benefício, ao segurado
que, tendo completado 35 anos de serviço, se homem, ou trinta anos, se
mulher, optou por permanecer em atividade. [6]
Entende-se que o fato que despertou o interesse dos segurados pela
desaposentação foi a extinção do direito ao pecúlio e o abono de
permanência. Segundo Marco Aurélio Serau:
A corrida pela desaposentação encaixa-se, assim, numa tentativa de
compensação pela extinção desses dois citados direitos previdenciários,
uma forma oblíqua de revisão de benefício previdenciário[7]
Entretanto, nenhum dos exemplos citados acima abrange verdadeiramente
a noção atual de desaposentação, vez que o instituto, como entendido
hoje, é fruto de criação jurisprudencial e doutrinária, atuando estas
como verdadeiras fontes do direito. Valiosa a lição de Theodoro Vicente
Agostinho e Sérgio Henrique Salvador, que em sua obra defendem que:
A análise histórica evolutiva do instituto da Desaposentação revela
sua total jovialidade no cenário vigente, onde a constante transformação
dos institutos jurídicos encontra, em seu ineditismo singular, a
demonstração clara de que certos valores prescindem de resguardo
jurídico, sobretudo eficaz, como a Desaposentação, a qual que revela um
verdadeiro instrumental de evolução de aprimoramentos sociais
regulados[8]
A desaposentação deve ser entendida dentro do contexto da Previdência
Social, organizada sob o modelo de Regime Geral, que é disciplinada na
Constituição Federal em seu artigo 201, abaixo colacionado:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a
forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação
obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e
atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;
II – proteção à maternidade, especialmente à gestante;
III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
IV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;
V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.[9]
Para a proteção e efetivação dos diversos eventos cobertos pelo manto
da previdência social, previsto em sua maioria no art. 201 da
Constituição Federal supra, em 24 de julho de 1991, foi publicada a Lei
8.213, que dispunha sobre os “Planos de Benefícios da Previdência
Social”. As espécies de benefícios, tratados na lei como prestações, são
disciplinadas no Capítulo II da Lei de Benefícios, sendo elencadas em
seu art. 18, in verbis:
Art.18. O Regime Geral de Previdência Social compreende
as seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos
decorrentes de acidente do trabalho, expressas em benefícios e serviços:
I – quanto ao segurado:
a) aposentadoria por invalidez;
b) aposentadoria por idade;
c) aposentadoria por tempo de contribuição;
d) aposentadoria especial;
e) auxílio-doença;
f) salário-família;
g) salário-maternidade;
h) auxílio-acidente;
II – quanto ao dependente:
a) pensão por morte;
b) auxílio-reclusão;
III – quanto ao segurado e dependente:
a) pecúlios;
b) serviço social;
c) reabilitação profissional.[10]
Contudo, esse rol de benefícios não é taxativo e vêm sendo
discutidas, especialmente pela doutrina e pela Jurisprudência, novas
espécies de benefícios com destaque para a “desaposentação”. O caráter
exemplificativo dos benefícios elencados na legislação fica claro ao
analisarmos o caput do art. 7º da Carta Magna, que segue: “Art. 7º São
direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,
além de outros que visem à melhoria de sua condição social.”[11] (grifo do autor)
Inicialmente é importante observar uma definição ampla e genérica do
instituto que a doutrina muito comumente utiliza: “a Desaposentação é
fenômeno jurídico diverso da aposentação”.[12]
Uma parte da doutrina, como André Stuart Leitão, define o instituto
como sendo “o desfazimento do ato concessório da aposentadoria, por
vontade do beneficiário”[13] e , de fato, olhando para o termo
“desaposentação”, essa é a definição lógica a ser utilizada. Ocorre que,
como veremos mais a frente, o instituto em análise é muito mais
complexo e possui outras fases.
Outra parte da doutrina, como Carlos Alberto Pereira de Castro e João
Batista Lazzari, entendem a Desaposentação como “o ato de desfazimento
da aposentaria por vontade do titular, para fins de aproveitamento do
tempo de filiação em contagem para nova aposentadoria”[14]. De maneira
semelhante conceitua Fábio Ibrahim Zambite que “a desaposentação
traduz-se na possibilidade de o segurado renunciar à aposentadoria com o
propósito de obter benefício mais vantajoso”.
Theodoro Vicente Agostinho e Sérgio Henrique Salvador assim definem o instituto:
Desaposentar-se é refazer algo, ou seja, alterar uma
situação jurídica existente e positivada para outra, de igual natureza,
mas com outros desdobramentos e efeitos jurídicos futuros, valendo-se do
tempo de fruição da pretérita aposentadoria.
Marco Aurélio Serau Junior entende a desaposentação como “uma espécie
de revisão de benefício previdenciário, num sentido mais abrangente da
expressão”[15].
Particularmente, defendo a desaposentação como uma majoração do
direito subjetivo fundamental de recebimento de aposentadoria, por meio
de mudança dos requisitos utilizados no cálculo do benefício a que fazem
jus os segurados que, após adquirirem o status de aposentados, voltam a
verter contribuições para a Seguridade Social. Dessa forma, a
desaposentação deve ser exigível junto ao Estado no sentido de ampliar o
rol de direitos fundamentais garantidos por este e de melhorar a
cobertura destes aos cidadãos.
A doutrina e a jurisprudência majoritárias entendem que a
desaposentação ocorre nas seguintes etapas: aposentação e retorno ao
mercado de trabalho; renúncia ao benefício que recebe, deixando a
condição de aposentado; nova contagem do tempo de serviço e das
contribuições; e retorno à condição de aposentado e constituição de um
novo benefício.
Conforme largamente discutido ao longo do presente trabalho, para que
uma pessoa possa se desaposentar é lógica a conclusão que esta deve
estar aposentada junto ao Regime Geral de Previdência Social. Como bem
define o Professor Wladimir Martinez:
Para atribuir validade à proposta de desfazer a
concessão, além de motivação real, é preciso que o titular esteja
aposentado, só gozando dessa capacidade jurídica o legalmente autorizado
a obter e a usufruir o benefício, legitima, legal e regularmente
concedida a prestação[16]
Além de estar recebendo o benefício regularmente, para que possa
postular o pedido de desaposentação é necessário que o segurado volte a
verter contribuições junto ao INSS.
Neste sentido, os arts. 18, § 2º e 124, II da Lei 8.213, são
dispositivos legais largamente invocados com o fito de obstar a
possibilidade do instituto em estudo, os quais determinam que:
Art. 18. O Regime Geral de Previdência Social compreende
as seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos
decorrentes de acidente do trabalho, expressas em benefícios e serviços:
§ 2º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social-RGPS que
permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não
fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do
exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação
profissional, quando empregado.
Art. 124. Salvo no caso de direito adquirido, não é permitido o
recebimento conjunto dos seguintes benefícios da Previdência Social:
II- duas ou mais aposentadorias[17]
Tais dispositivos visam vedar a dupla aposentadoria do segurado que
retorne ao trabalho. Porém, a desaposentação não visa o acúmulo de
aposentadorias, mas tão somente a melhoria do benefício que recebe.
Valiosa a lição do ilustre professor Wladimir Martinez, largamente citado ao longo do presente trabalho, ao defender que:
Possivelmente o legislador quis com esse bis in idem
reforçar a ideia da acumulação indevida, mas a desaposentação não é nada
disso. Quando operada dentro do RGPS praticamente adota a natureza de
uma revisão de cálculo da renda mensal mantida com o cômputo das
contribuições vertidas após a aposentação[18]
Ademais, a defesa de que tal dispositivo infra legal poderia
impossibilitar o direito à desaposentação não pode ser
invocada levando-se em conta o dispositivo constitucional previsto no
art. 201 § 9º da Carta Magna, que permite, amplamente, a contagem
recíproca de tempo de contribuição na administração pública e na
atividade privada, rural ou urbana, mediante compensação financeira
entre os regimes previdenciários, o que já é pacificado. Segue o art.
201 § 9º da Constituição Federal compilado:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a
forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação
obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e
atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
§ 9º Para efeito de aposentadoria, é assegurada a contagem recíproca
do tempo de contribuição na administração pública e na atividade
privada, rural e urbana, hipótese em que os diversos regimes de
previdência social se compensarão financeiramente, segundo critérios
estabelecidos em lei. (Incluído dada pela Emenda Constitucional nº 20,
de 1998)[19]
Ademais, a norma em discussão, Decreto 3.048/99, “haveria de ser
interpretada de modo teleológico, isto é, de modo a beneficiar o
segurado. Deveria funcionar como proteção a atos lesivos aos interesses
do segurado, mas nunca como entrave à melhora de sua situação
jurídica”[20]. Portanto, partindo do pressuposto de que a CF/1988
permite o aproveitamento do tempo de contribuição entre os diversos
regimes previdenciários, é inaceitável que lei infraconstitucional ou
até mesmo determinação infra legal possa restringir tal direito.
É importante ressaltarmos ainda algumas das características inerentes
ao ato de desaposentar-se, quais sejam: a manifestação personalíssima
de vontade do titular por meio da desistência formal deste, a natureza
do benefício e a motivação específica do titular, no sentido de melhorar
sua condição econômica. É necessário, ainda, que não haja prejuízo para
nenhuma das partes envolvidas, conforme veremos adiante.
Ademais, saliento que a Desaposentação é ato de manifestação
personalíssima de vontade. Por este motivo a demonstração de vontade do
titular é condição obrigatória para que se possa falar em direito ao
instituto em estudo. Neste sentido, valorosa a lição de Peterson de
Souza, ao defender que “o pedido de desaposentação deverá
necessariamente ser formulado pelo seu titular, de acordo com sua
vontade e no momento que entender pertinente”. O ilustre doutrinador
prossegue dizendo que “decorre daí que não pode a administração pública,
sob qualquer argumento, promover a desaposentação do segurado sem que
este tenha dado início ao procedimento”[21]. No mesmo sentido, o
professor Wladimir Martinez entende que, por se tratar de direito
subjetivo, em face da definitividade da prestação previdenciária, não há
desaposentação de ofício, sendo pacificado pela doutrina e
jurisprudência o entendimento de que a manifestação de vontade do
titular é requisito para concessão da desaposentação.
A desaposentação, conforme largamente demonstrado, pressupõe a
abdicação de um status quo anterior com vistas a obtenção de benefício e
situação mais vantajosos. Ocorre que, conforme defende Wladimir
Martinez:
No Direito Social, a desistência de direitos sempre foi
concebida como instituto, cujos limites são o interesse público e a
proteção à liberdade do indivíduo. (…) Na aposentação, constituindo-se
numa garantia do indivíduo, não pode haver renúncia forçada. A
desaposentação tem como pressuposto a renúncia do direito de receber as
mensalidades de um benefício regularmente deferido anteriormente para a
seja concedido benefício mais favorável posteriormente. Não carece
desconstituir o direito anteriormente deferido[22]
A doutrina e a jurisprudência adotam largamente a noção de que o
benefício da aposentadoria é um direito disponível, vez que estes têm
natureza patrimonial. Esta noção é, inclusive, acatada no julgamento do
Recurso Especial Repetitivo nº 1.334.488/SC no STJ, conforme trecho do
julgado:
Reconhecida pela jurisprudência desta Corte a
possibilidade de renúncia aos benefícios previdenciários, os quais são
direitos patrimoniais disponíveis e, por isso, suscetíveis de
desistência por seus titulares (REsp 1.334.488⁄SC, Rel. Min. HERMAN
BENJAMIN, Primeira Seção, DJe 14⁄5⁄13), o segurado pode dispor de seu
benefício, e, ao fazê-lo encerra a aposentadoria que percebia, não
havendo falar em afronta aos arts.18, § 2º, da Lei 8.213⁄91[23]
É importante, ainda, que o pedido de desaposentação tenha a motivação
específica de melhorar a sua condição financeira e, em consequência, a
proteção social do titular. Valioso o entendimento de Wladimir Novaes,
segundo o qual:
Moralmente, não se admite que um aposentado, querendo se
prejudicar, receba menos, exceto, num raríssimo caso, se isso lhe
trouxer alguma felicidade. Também é rejeitada a ideia de causar danos a
terceiros ou instituições. A motivação será pessoalmente nobre e
expressada quando do pedido[24]
O exercício do direito à desaposentação não pode causar prejuízo a
terceiros e nem às instituições, conforme já mencionado acima. Desse
entendimento analisado em conjunto com o princípio do equilíbrio
financeiro e atuarial surge a discussão se a devolução das mensalidades
pagas pelo INSS a título de primeiro benefício é requisito para
concessão da desaposentação. Ocorre que “em previdência social não
existe vantagem ou privilégio, mas direito ou não em contrapartida às
contribuições vertidas ou não”[25].
O princípio do equilíbrio atuarial e financeiro do Sistema de
Seguridade Social, conforme demonstrado em momento posterior neste
trabalho, foi inserido em nosso ordenamento pela EC nº 20/98 que alterou
profundamente o caput do art. 201 da Carta Magna.
A devolução dos valores pagos a título de primeira aposentadoria é um
dos pontos de maior controvérsia no estudo da desaposentação,
destacando-se duas correntes neste debate: que nenhum valor deve ser
devolvido; e que devem ser devolvidos todos os valores, retornando ao
status quo ante.
Ao defender que todos os valores devem ser devolvidos, entendem os
doutrinadores, como é o caso de Peterson de Souza, que a devolução é
requisito essencial para o deferimento do pedido de Desaposentação,
segundo o qual:
O efeito da Desaposentação deve ser ex tunc, ou seja, o
ato de aposentação é desconstituído e as partes envolvidas retornam ao
estado originário.
(…)
Para termos adequada proporção entre despesas e receitas
necessariamente devemos não ter pagamentos até a DIB, o que se torna
possível somente com a devolução de todos os valores recebidos em
virtude da aposentadoria renunciada, devidamente corrigidos[26]
Esta corrente doutrinária encontra até argumentos que podem convencer
aqueles que temem o colapso da seguridade, sendo por vezes acolhida em
julgados. Todavia, deve ser levado em consideração a posição do Estado
como garantidor dos direitos sociais e de defensor dos interesses dos
indivíduos, além de que a devolução integral dos valores tornaria
impraticável a Desaposentação, impedindo o aprimoramento do benefício e
da proteção social dos indivíduos.
A corrente que entende que nenhum valor deve ser devolvido tem sido
largamente acatada pela jurisprudência e pela doutrina. Entre os
argumentos utilizados para tal, um dos mais comuns e lógicos é o de que o
período de percepção do benefício em manutenção será compensado com a
menor expectativa de vida do segurado[27].
Sobre a não devolução dos benefícios recebidos a título de primeira
aposentadoria, o STJ já se posicionou em série de recursos repetitivos,
unificando o entendimento de que:
A pessoa que se aposentou proporcionalmente e continuou
trabalhando e contribuindo para a Previdência pode, mais tarde, desistir
do benefício e pedir a aposentadoria integral, sem prejuízo do dinheiro
que recebeu no período. Esse direito dos aposentados nunca foi aceito
pelo INSS, que considera impossível a renúncia ao benefício e nega todos
os pedidos na via administrativa[28]
Importa salientar que decisão tomada no rito dos recursos
repetitivos, previsto no art. 543-C[29] do Código de Processo Civil,
passa a orientar os cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs) do país,
na solução dos recursos que ficaram sobrestados à espera da posição do
STJ. Com efeito, os recursos que sustentem posição contrária não mais
serão admitidos para julgamento no Tribunal, e os tribunais de segunda
instância que julgarem diversamente poderão se ajustar a esta posição do
STJ.
Merece destaque a posição trazida por Theodoro Vicente Agostinho e Sergio Henrique Salvador:
A desaposentação deve ser entendida pela sua finalidade
protetiva, inserida no plano especial de tutela estatal previdenciária,
devendo contemplar os infortúnios da vida, decorrentes de eventos
futuros e incertos, na busca de uma melhor proteção social do cidadão.
(…)
Como impingido, a problemática deve ser solvida à luz de uma análise
principiológica, reveladora do protecionismo social a que a ordem
jurídica elencou como primado[30]
Destacada também é a contribuição que Marco Aurélio Serau Júnior traz ao debate, quando em sua obra, defende que:
Um dos pontos fulcrais que refutam a necessidade de
devolução dos valores da primeira aposentadoria concerne ao modelo
previdenciário brasileiro, pautado pelo princípio da solidariedade.
Diferentemente do que ocorre nos regimes de capitalização pura, esse
postulado impede que se quantifique, exatamente, o quantum com que se
contribuiu o segurado antes de aposentar-se e o quanto, concretamente,
deveria ser devolvido. (…)
Não seria correto, tampouco justo, num sistema baseado na
solidariedade social, que apenas o segurado aposentado devolvesse, na
integralidade, os valores obtidos com a primeira aposentadoria.
(…)
Regimes previdenciários baseados na solidariedade possuem como
objetivo não só a concessão de aposentadorias, em si consideradas, mas
também objetivos político-sociais relevantes, tal qual a redistribuição
de renda e a preservação do pacto Inter geracional.
(…)
Nessa linha de argumentos, devem-se afastar as razões meramente
economicistas que tratam a desaposentação como simples ônus para o
Estado, exigindo em contrapartida verdadeira contraprestação por parte
do segurado, o que é um tanto diverso do regime previdenciário, conforme
os princípios que o informam desde seus primórdios. A Previdência
Social é eminentemente contributiva, mas, igualmente solidária, quer
dizer, não obedece a uma lógica meramente matemática e atuarial; esta
deve ser sopesada pelo critério eminentemente protetivo que inspirou sua
criação[31]
Entretanto, conforme lecionou Wladimir Martinez:
A questão não tem nada a ver com a legitimidade, mas com o
acerto de contas entre os planos, o raciocínio válido nessas condições
não é jurídico, mas o pensamento jurídico, quando cabível, nasce do
equilíbrio técnico[32]
O equilíbrio financeiro e atuarial deve ser um dos pilares de todo
regime de previdência. Todavia, o desequilíbrio do sistema de proteção
social brasileiro foi provocado, principalmente, pela atuação
completamente equivocada da Administração Pública. Dessa forma, a
impossibilidade de a desaposentação ser deferida deve ser comprovada
claramente pela Administração, além de ter que demonstrar que atuou da
melhor maneira possível ao gerir o Sistema de Seguridade Social
brasileiro.
Diante da utopia da situação suscitada acima, bem como levando em
conta o papel do Estado de garantidor das necessidades básicas dos
cidadãos e da efetivação dos direitos fundamentais, sou adepto da
corrente que entende que é desnecessária a devolução das prestações
pagas a título de primeira aposentadoria.
Importante salientar que a Constituição Federal, seguindo o modelo de
Estado Social, elevou os Direitos Sociais ao status de Direitos
Fundamentais, ao incluí-los dentro do Título II “Direitos e Garantias
Fundamentais” de seu texto, razão pela qual é errada a classificação das
aposentadorias como direitos de natureza patrimonial disponíveis e, por
isso, renunciáveis.